Uma História Brasileira ou A Última Geração
A noite caiu, trazendo consigo o estupor do verão repleto de insetos fluorescentes e beijos roubados em lábios descascados. Eu estive lá. Eu, o Daniel de sempre, no meio da cambada. O maior calor, ventiladores ligados à toda potência e nossos ossos chacoalhando dentre o ócio de um sábado perdido. Se ao menos eu tivesse junto de mim uma loira gostosíssima das capas de revistas...as coisas mudariam de figura. Talvez eu conseguisse vislumbrar algum sorriso sincero (quem sabe...), ou uma dança de arromba que despertasse os olhares vítreos de um punhado de amigos. Mas nada disso aconteceu. Não nesse dia. O mundo não explodiu em pedaços incandescentes que arrebatam o universo e o jogo não acabou um a zero. Fiquei sentado na poltrona assistindo desenhos antigos até o cair da noite. E ela caiu. Caiu como um pedaço de rocha. Ela caiu e o pessoal foi sentar em volta da mesa, e começamos a gritar, como doidos. Ao menos eu posso dizer com certeza: sou doido. Doido de marca maior. De pedra. A loucura me caiu como um pedaço de rocha.
Me preocupo com a minha vida, sentindo-a frágil como uma folha de seda. Nunca consigo um momento de paz absoluta, sou sempre essa folha translúcida revoando numa ventania intensa, prestes a arrebentar numa sutura que jamais será costurada. Sinto-me impotente diante da fatalidade e sinto a presença constante e quente dos seus olhos sobre a minha sombra. Sinto ela me olhando como um grande falcão cheio de fome, voando pelo céu noturno que encobre todos os meus sonhos. Sim, disso eu posso dizer: sou doido de pedra, mas o que mais me assusta é a possibilidade de não ser. A possibilidade de que nada seja imaginação. De que tudo se mostre verdade. Que grande droga seria. Uma tragédia, pra ser mais exato. E já estou aqui divagando novamente. Comecei falando do sábado à noite, das garotas e dos tempos perdidos, e cá estou falando da quinta de manhã, dos medos, das doenças e das tragédias. Um fantasma que dorme vez por outra e sempre acaba acordando alguma hora dessas, com a voz gutural das coisas que não podem ser evitadas.
Encostei o dedo no meu tornozelo esquerdo e senti uma dor no osso. Novamente me preocupo com a possibilidade de estar condenado ao final trágico de uma doença fatal. Um câncer ou alguma coisa que te foda todo, que te deixe numa cadeira pelo resto da vida com duas pernas inúteis e inertes ou, até mesmo, sem perna alguma. Puta que pariu, quando penso me parece tão real! Digo a mim mesmo que nada existe, que como tudo o mais na minha vida, é história e ficção, ficção criada pelo rei das ficções, mas encosto o dedo no tornozelo e o osso dói! E aí, como é que fica? Será que vou morrer? Que vão serrar as minhas pernas e me olhar com sorrisos complacentes? Que vão abrir as minhas costas e destrinchar a minha medula até que nada sobre de alguém que um dia se chamou Daniel Frazão Simões? -nem mesmo esse nome sinto como se me pertencesse- Que vou entrar na fila do transplante? Que vão colocar o meu retrato numa daquelas propagandas de S.O.S. porque sou sem grana demais pra pagar um hospital especializado em desgraças grandes? Puta que pariu, acho que os meus anos são contados às dezenas, o que me coloca na idade avançada de 250 anos. É assim que me sinto quando olho pras minhas pernas e pros meus braços latejando. Quando me preocupo com coisas que nenhum dos meus amigos se preocupa. Será que vão voltar ao salão com os olhos fitados nas minhas radiografias e colocar o braço sobre os meus ombros e dizer que precisam conversar comigo? Será que nunca vou ter a oportunidade de ser Daniel Frazão Simões? -nem mesmo esse nome sinto como se me pertencesse- Ou melhor, será que nunca vou ter a oportunidade de ser o cara que eu sou? E acho que pra fazer isso preciso de um outro nome. Um novo nome. Algo que reflita melhor a minha essência. Se é que posso chamar de essência esse pequeno universo de ectoplasma e espíritos adolescentes que tenho na caverna da alma. Até fico com o Daniel, mas sinceramente, não gosto de sobrenomes. Existem grandiosos espectros de inúmeras formas e cores respirando dentro de mim, mas estou chafurdado demais em todos esses temores, cogitações, essas dores nas pernas e câimbras nas mãos para me tornar a legião dos espíritos. No interior de um labirinto de finais trágicos e bregas, onde tudo o que faço é chorar feito uma merda boiando na praia, enquanto o meu retrato sorridente assombra os canais locais com um grande S.O.S vermelho no topo. Não sou um bastardo grego, seus filhos da mãe! Não tenho tempo pra vocês, seus olhos macerados do destino encurralado no caminho errado! Vocês são merdas demais pra mim e eu sou bom demais pra vocês, seus locutores televisivos, médicos de jalecos verdes, cientistas americanos, vendedores de calcinha e sutiã, empresários do ramo dos fast foods, mentirosos, apresentadores do TOP TEN, deuses, moiras, saiam do meu tornozelo esquerdo! Não quero acabar chafurdado em vocês. De todas as pessoas, eu sou o único que não pode acabar abraçado com vocês, seus merdas, merdas, merdas. Eu não quero morrer. Eu não quero morrer garoto, ou ficar sentado numa cadeira de rodas ganhando brinquedos do papai ou perder as pernas ou perder os braços ou caminhar de muletas ou andar arrastando o pé ou dar palestras à uma platéia inválida, e nem passar por uma operação, mesmo que venha a sair ileso, simplesmente porque não quero ser tocado por vocês, merdas do universo. E não me refiro à pessoas, materialmente falando. Não quero os seus dedos pela minha testa e as suas vozes de ecos dizendo "mais um". E a razão pela qual não quero morrer é a mesma pela qual não quero perder os cabelos ou perder o talento: tudo representa o toque dos seus dedos. O toque de merda que traz a banalidade e a cafonice. E eu não quero ser banal. Não quero ser comum, tragicamente comum. Não quero passar por hospitais, nem que meus pais façam tudo o que é merda pra arrumar dinheiro pra me pagar alguma operação caríssima ou que exibam a minha foto sorridente com um S.O.S. vermelho em algum ridículo canal local. Não quero ser visitado pelos amigos que se esforçam para sorrir e não chorar. Não quero me chafurdar nesse mundo de merda onde se tem uma foto sorridente de um moleque doente ou um cartaz de DESAPARECIDO colado nos postes, onde se morre atropelado na esquina, ao som de "Macareña" que toca nos autos-falantes da loja ao lado. Onde se morre na esquina e as pessoas continuam atravessando a rua quando o sinal fica vermelho. Não quero ser uma merda de um semblante nesse lodaçal, nesse universo banal. Não quero ser tocado por vocês, seus merdas. Não vim aqui pra isso, vim aqui por alguma outra razão. Eu quero permanecer intocado, intocado por vocês, porque essa é a minha razão de existir. Será que vocês não conseguem ver, seus merdas? Eu sou Elvis Presley. Eu sou Jack Kerouac. Eu sou Lampião. Eu sou Tarzan. Eu sou James Dean. Eu sou Jim Morrison. Eu sou o Super-Homem. Eu sou Betty Boop. Eu sou Stephen King. Eu sou Júlio César. Eu sou Macunaíma. Eu sou Rodolfo Valentino. Eu sou William Shakespeare. Eu sou Van Gogh. Eu sou Jackson Pollock. Eu sou Cleópatra. Eu sou Prometeu. Eu sou Maria Callas. Eu sou Lúcifer. Eu sou Abel. Eu sou Caim. Eu sou Demian. Eu sou Dean Moriarty. Eu sou Beatles. Eu sou Lênin. Eu sou Nostradamus. Eu sou os Kennedys. Eu sou Hanna & Barbera. Eu sou Charlie Brown. Eu sou Charlie Parker. Eu sou Rimbaud. Eu sou Edgar Allan Poe. Eu sou Lord Byron. Eu sou Mary Shelley. Eu sou Alfred Hitchcock. Eu sou o Cidadão Kane. Eu sou Neal Armstrong. Eu sou Louis Armstrong. Eu sou Ed Wood. Eu sou Henry Miller. Eu sou Jesus Cristo. Eu sou o século vinte. E todos eles passaram pela vida intocados. E mesmo quando morreram, morreram intocados pelos seus dedos, seus merdas, e vocês não suportam isso. Eles simplesmente... estavam além. Além da feiúra e da beleza feia, além das ruas perigosas onde os carros atravessam os sinais vermelhos e te matam enquanto os curiosos se aglomeram. Além da calvície. Além das dentaduras. Além do acúmulo de gordura no abdômen. Além do tédio. Além das dores nas pernas. Eles estavam além de todas as suas tragédias banais, todos os seus ridículos finais, e vocês não suportam isso, deuses do destino, deuses do acaso, jogadores dos dados da fatalidade, escórias da realidade, merdas da existência, profissionais do ramo, ratos da banalidade. Isso os deixa furiosos e vocês correm como doidos esbaforidos e eles simplesmente vão embora, morrem ou desaparecem, deixando um rastro de espíritos abstratos bem diante das suas fuças, e tudo o que vocês podem dizer é "lá se vai mais um", e sacolejar as garras, sem nada a fazer além de aceitar que nestes vocês não encostaram os seus dedos cafonas que matam e tocam "Macareña". Escórias, merdas, realidade, pés no chão, maturidade, problemas enfrentados com serenidade. Vocês não suportam isso. Vocês não suportam isso e tentam agora me tocar. E tenho medo de que estejam me tocando, quando pressiono o dedo no tornozelo e sinto doer. Tenho medo de ser arrancado da razão pela qual existo e arrastado em direção à uma fotografia sorridente em canais locais e tardes gastas em salas de espera de hospitais públicos. Tenho medo disso mais do que tudo. Medo de ser um garoto pelo resto da vida e de não ter resto de vida. E de que nada reste na vida. De que a vida por si mesma seja um resto. De que nada nos reste. Medo de tudo que representa vocês, seus merdas, e por vocês uma insuportável repulsa tão grande quanto o medo, e uma inevitável fúria, e uma única certeza de que se um dia tiver o poder suficiente nas mãos, esmagarei todos vocês, cagarei em cima da fedentina e da barulheira, mesmo que signifique o fim de tudo o que existe. Tenho medo até de ser um dos sortudos que passam por uma grande tragédia e chegam ao dia seguinte para contar a história, pois sei que mesmo assim, mesmo se saísse ileso duma coisa dessas, estaria morto, deixaria de ser eu mesmo, pois a sorte que me abraçaria, seria a sorte de vocês, a que vocês despejam, a sorte de um mundo de merda. E mesmo na sorte, eu estaria tocado. Tocado e chafurdado em vocês, seus merdas que avançam sinais vermelhos, que tiram radiografias da coluna e que tocam Macareña.
Subitamente me dei conta de que não sou eu, como um indivíduo, que estou falando, e que agora canalizo uma voz coletiva, uma voz de silêncio. A voz dos que foram tocados. Tocados por vocês. Minha alma está violada. Eu não sou nenhum daqueles que citei. Eu sou o silêncio. Eu sou a impotência. Eu sou A Geração X. Eu sou Kurt Cobain. Eu sou o cerco. E estou cercado. E o silêncio é o meu legado. Eu, a Geração X, a última geração do século vinte, a que o mundo denominou de vazia e fracassada. A geração diante à tv. A geração que envelhece dez anos por minuto e cheira a espírito adolescente. Os filhos do meio da história. Os que assistiram o primogênito sair de casa e construir um castelo no topo de uma montanha verde; os que assistem o caçula ser acalentado nos braços da mãe, enquanto estão perdidos num limbo, numa tarde que passa ao som dos comerciais. A geração que já nasceu pronta e sem voz. E o silêncio é o meu legado. O seu toque, banalidade, é o meu legado. Esse é o meu verdadeiro temor, não é? Esse é o temor de todos nós. Temer não a morte, mas a banalidade, e tudo o que a representa. Temer ser comum. Como toda a minha geração. A última do século vinte; a primeira do século vinte e um. Temer tanto, pois fomos tocados, como Kurt Cobain. Esse é o nosso legado. O legado do silêncio. Quando escutar o silêncio, você estará escutando a nossa voz. A geração X. A geração impotente. A Geração Ex. A que leva nas costas o peso de acabar um século de luzes e descobertas, fechando as cortinas num horrível anticlímax debaixo de vaias. A geração condenada a abrir alas para um novo século, apresentando-o ao mundo. Então eu o apresento, senhoras e senhores, o século vinte e um. É exatamente isso o que vocês estão vendo. Somos nós, a geração x. A geração dos vazios, dos fracassados. Dos filhos do meio, que assistem tv enquanto os pais atravessam apressados a sala sem dar a mínima. A geração que se alimenta de restos. A geração que deveria se chamar decepção, pois é isso o que recebemos do terceiro milênio. Não ganhamos missões nobres como as gerações anteriores, mas sim a missão cruel, insana e sem nenhum sentido: a de entrar no abismo. Não a de entrar no abismo para resgatar algum propósito nobre ou para transformar a tragédia e a dor em coisa bonita, como outras gerações já fizeram, mas apenas o simples e triste ato de entrar no abismo. Passivos. Entediados. Sem voz.
Me desculpe, Geração Flower Power, mas a nossa dor não é a sua dor, a de acabar com uma guerra, derrubar uma ditadura e anunciar o amor. Me desculpe, Geração Beatnik, mas a nossa dor não é a sua dor, a de se estar sem dinheiro no meio de uma estrada após a segunda guerra. Me desculpe, Geração Perdida dos loucos anos vinte, mas a nossa dor não é a sua dor, a de se estar endinheirado após a primeira guerra e gastá-lo em sarais literários, champanhe e mulheres. Me desculpe, Geração Desbravadora da primeira década, mas a nossa dor não é a sua dor, a de migrar numa carroça debaixo de um sol de quarenta graus em direção ao oeste americano e sertão brasileiro, onde serão erguidas novas cidades. Que me desculpe todas as gerações de todos os séculos, mas a nossa dor não é a sua dor. A nossa dor é a de estar sentado no quarto sentindo uma sensação estranha na perna e no braço. E qual a razão da minha, da nossa, dor (afinal todas as dores de todas as gerações tiveram as suas razões)? Qual o sentido? Não tem sentido. Como tudo o mais.
Aqui estou eu, entretenha-me.
Daniel Frazão