Saudades de João 23
Quando li sobre a última do cardeal Joseph Ratzinger, que disse considerar o catolicismo a única religião autêntica, me deu uma baita saudade do papa João 23.
O comunicado do cardeal e o fato de vir passar os feriados em Poços de Caldas me reavivaram a memória sobre o que representou a ação de João 23, não em Roma, não nos grandes centros de discussão teológica, mas naquela pequena cidade mineira, de uns 40 mil habitantes, mais especificamente no nosso grupo de amigos.
Fiz a primeira comunhão com 7 anos. Antes dos 10 tinha feito as nove sextas-feiras. Não completei os cinco sábados, mas as sextas-feiras já haviam me garantido o céu, assim como o escapulário e o Agnus Dei. Aos 10, virei cruzado mariano na Matriz. Aos 11, já no Marista, tornei-me congregado mariano. Aos 14, fui coroinha do Colégio São Domingos, mas _aí confesso_ para ficar mais perto de uma namoradinha interna.
Quer uma opinião sincera, nostálgica e saudosista? Era um horror!
Aquela visão do soldado de Cristo trazia embutida toda a intolerância dos que encaram o mundo como uma guerra. Coitados do Ricci, que era protestante, e do Netinho, que era espírita e que ficou mais conhecido em Belo Horizonte (onde militou na política estudantil) e em São Paulo (como líder do PC do B) como Barbosinha.
Deus me livre daquele Deus implacável, punitivo, expresso nos quadrinhos com um olho imenso e os dizeres "Deus me vê", que enfeavam cada sala de aula do Marista. Deus me livre do irmão que vinha dizer que em cada masturbação a gente matava milhares de crianças. Deus me livre do irmão José Bento, o Baiano _cujas aulas de matemática eu adorava_, quando vinha, implacável, com o catecismo Cauly. "Seu Nassif, ontem me disseram que o senhor andou comprando um livro do frei Josapha (tido por esquerdista). Catecismo, que é bom, nada!", e toca me mandar abraçar a coluna do pátio.
Por seis meses, aos 14 anos e meio, estudei com jesuítas, na Escola Técnica de Eletrônica de Santa Rita do Sapucaí. Ali o ambiente era mais militarizado ainda. Por essa época, andaram ressuscitando "Os Protocolos dos Sábios de Sião", que apontavam para uma conspiração sionista para dominar o mundo. No Brasil, o integralismo tinha como sua bíblia livros do historiador Gustavo Barroso, esposando teses semelhantes. Em Santa Rita, embora os padres não explorassem muito a política, havia um orientador espiritual que confirmava a conspiração sionista e que dizia que os jesuítas foram criados justamente para salvar a Santa Madre dos infiéis.
Pois foi nesse ambiente irrespirável que surgiu a figura mansa de João 23. Quando João Paulo 2º foi indicado, o Vaticano espalhou fotos dele esquiando, para provar que os papas também são humanos. João 23 não precisava disso. Bastava o olhar doce, de camponês italiano, e as palavras.
Nem me lembro direito mais do conteúdo das encíclicas "Mater et Magistra" e "Rerum Novarum", que mudaram os rumos da igreja. Mas me lembro o que ocorreu com nosso grupo. Saí dos congregados e aderi à JEC (Juventude Estudantil Católica). Passamos a visitar a favela do Serrado, levando roupas, alimentos e instrução. Principalmente, aprendemos as virtudes da tolerância, a nos abrir para o mundo de uma maneira diferente.
No novo mundo havia espaço, de igual para igual, para o Ricci e o Netinho. E a distância que separava o mundo antigo era de apenas um quilômetro _a avenida Champagnat, que ligava o velho Marista ao novo, o Colégio São Domingos das freirinhas.
Os dominicanos representavam nosso ideal de religião. Não apenas as freirinhas, que nos abrigavam da intolerância e da repressão dos maristas _além de nos permitir a convivência com as internas. Os seminaristas dominicanos de São Paulo, do convento de Perdizes, passavam as férias por lá, vigiados pelo frei João Baptista, um inovador que criou uma fábrica de móveis com gestão dos empregados. Era uma rapaziada esportista, séria com as meninas, porém gozadora, que nos acompanhava nas serenatas com suas vozes treinadas pelo canto gregoriano.
No Marista, a figura dominante era o olho de Deus. Nos dominicanos, o Cristo _como chamavam Jesus. No Marista, havia um culto estranhíssimo a Virgem Maria, já que sua única função era encaminhar os pedidos ao filho severo. Nos Dominicanos, era Maria, figura doce, porém afirmativa.
Com o tempo, me afastei de ambos, do velho e do novo e envelhecido catolicismo. Mas, sob a noite fria e estrelada de Poços, lembrei-me mais uma vez de João 23. E quase me deu vontade de voltar a crer.
Luis Nassif