OS ETERNOS ANOS SESSENTA
Fiz um enorme esforço, físico e mental, para ler o calhamaço de quase quatrocentas páginas da biografia “MAYSA – Só Numa Multidão de Amores”, de Lira Neto, Editora Globo, São Paulo, 2007. Falando assim dou a impressão que o livro não é bom? Sei que uma leitura cansa quando ultrapassa a linha demarcatória da boa qualidade. Nada sabia do autor nem de seu trabalho. Sabia da importância da autora na vida das pessoas da mesma faixa de minha idade, que se desprenderam musicalmente (e existencialmente) do histórico repertório do samba-rasgado e de breque e do samba-canção e do chorinho, para defrontarem, assimilarem e agüentarem o peso do cancioneiro da fossa e da bossa, do iêiêiê, do rock, do tropicalismo e de todo o purgatório público e notório dos anos sessenta. A voz dela, aquele soluço de sua renhida intimidade, é o que mais valia, o que mais importava, e que mais emocionalmente influenciava, com todas as ressonâncias mórbidas inevitáveis e marcantes. Levei semanas para ler o livro, mas li, tim-tim por tim-tim, como se diz.
Maysa, no lusco-fusco de sua voz pausada e sentimental, tão sincera numa convicta melancolia, não se desfazia na vida que levava, nos atos deseducados e desordenados que, ao contrário, mais alimentavam sua inspirada criatividade. O espírito lhe dizia uma coisa e a inteligência outra? Exprimia a desavença da fossa com os novos tempos, num rompimento formal e conteudístico com o lirismo das penumbras de uma solidão não-solidária dos estilos musicais de épocas anteriores? Ela, uma artista, não sabia perdoar as incongruências sociais, predispondo-se a contra-atacar os atritos de seus dessemelhantes? Filha mimada da vida, não sabia acautelar-se do revés, para neutralizá-lo? Almejava uma resposta cor de rosa para suas cinzentas interrogações na chamada vida prática? E, assim, de revolucionária, passava à reacionária? Tornava-se um tanto máscula no ato mesmo de impor-se como feminista? “Antes dessa história de feminismo”, ela é citada na página 256, “eu já mandava na minha vida e não dependia de nenhum homem para falar o que eu devia ou não fazer”. Sem compreender as incompreensões, tornava-se irritada e irritante, atropelando os amigos, os amantes, os colegas e o próprio público que, não raro, se decepcionava na própria adoração. Daí a perpetração de atos falhos virou uma constância, manifestada no alcoolismo, na obesidade, degradando sua talentosa criatividade, enfeiando-a fisicamente na ressaca dos desregramentos. Uma pessoa no palco das multidões e sozinha no desgostoso ensimesmamento.
Ela era também um mau caráter, no sentido mais banal e estrito da denominação? O que aprontava com os amigos, amantes, desafetos e concorrentes, denunciam o estopim curto de suas reações nervosas diante de situações até mesmo da vida cotidiana em família e em sociedade. Reação não propriamente esquisóide, mas fisiológica, como a do animal ofendido ou mimado pelo lado erógeno de sua natureza. Os gatos e cães perdem a docilidade quando acariciados como se fossem erroneamente açoitados. Se coçarmos o corpo de um desses seres, principalmente o de um gato, tudo bem, ele gosta e agradece, mas experimente coçar ao longo da espinha dorsal no sentido da nuca ao rabo: ele vira “bicho”, como se diz, e reage com os espinhos de suas unhas e dentes. Isso por que? O que é bom demais fica ruim? O que na cultura popular chamam de “dor da bondade”, referente ao orgasmo dos seres humanos, é assim previamente repelido pelos gatos e cães? Mesmo na roça (quando lá vivi) existia no meio da meninada um que imitava os frenéticos miados dos gatos na hora do bem-bom deles. No auge libidinal, quando todas as preliminares (o corre-corre pelos muros e telhados) estavam cumpridas, no momento do ímpeto crucial e final do tesão mais gritante, o macho chega a gritar quase que humanamente com as palavras por assim dizer maiúsculas, para a fêmea: “CADÊ A CALCINHA DE RENDA QUE EU TE DEI?!” E ela, não menos enfurecidamente tesada, responde: “RASGA-A, DANADO!”
Com os seres humanos também pode acontecer essa contradição, esse prazer como que à revelia? Quem ama demais quer possuir, maltratar, subjugar e, até, matar? Quantos casos a imprensa não noticia a respeito! Bernard Shaw queixava, através de um personagem (celibatário convicto) que não caia nas graças de uma mulher porque sabia que nenhuma delas aceitaria que ele possuísse uma alma incólume. Maysa também foi assim, desavisada, rancorosa, possessiva, zangada com seus inúmeros amantes. Toda sua infelicidade afetiva (fonte de sua riqueza musical) resultava dessa contradição, por assim dizer, sexo-emocional? Penso que ao autor da biografia repleta de dados vivenciais, às vezes deslustrados de quinquilharias adjacentes, faltou priorizar a parte zangada e deprimente da capacidade natural de amar e de altercar dela, de seu desequilíbrio emocional – um drama sempre caminhando para o esbarrancado da tragédia. “Adeus, logo mais eu telefono/ Eu agora estou com sono/ Vou dormir, pois amanhece”. Esta é uma das estrofes da canção “Adeus” , que ela compôs aos doze anos de idade, lembrando de longe a precocidade de Rimbaud. OS ETERNOS ANOS SESSENTA - Lázaro Barreto.
Fiz um enorme esforço, físico e mental, para ler o calhamaço de quase quatrocentas páginas da biografia “MAYSA – Só Numa Multidão de Amores”, de Lira Neto, Editora Globo, São Paulo, 2007. Falando assim dou a impressão que o livro não é bom? Sei que uma leitura cansa quando ultrapassa a linha demarcatória da boa qualidade. Nada sabia do autor nem de seu trabalho. Sabia da importância da autora na vida das pessoas da mesma faixa de minha idade, que se desprenderam musicalmente (e existencialmente) do histórico repertório do samba-rasgado e de breque e do samba-canção e do chorinho, para defrontarem, assimilarem e agüentarem o peso do cancioneiro da fossa e da bossa, do iêiêiê, do rock, do tropicalismo e de todo o purgatório público e notório dos anos sessenta. A voz dela, aquele soluço de sua renhida intimidade, é o que mais valia, o que mais importava, e que mais emocionalmente influenciava, com todas as ressonâncias mórbidas inevitáveis e marcantes. Levei semanas para ler o livro, mas li, tim-tim por tim-tim, como se diz.
Maysa, no lusco-fusco de sua voz pausada e sentimental, tão sincera numa convicta melancolia, não se desfazia na vida que levava, nos atos deseducados e desordenados que, ao contrário, mais alimentavam sua inspirada criatividade. O espírito lhe dizia uma coisa e a inteligência outra? Exprimia a desavença da fossa com os novos tempos, num rompimento formal e conteudístico com o lirismo das penumbras de uma solidão não-solidária dos estilos musicais de épocas anteriores? Ela, uma artista, não sabia perdoar as incongruências sociais, predispondo-se a contra-atacar os atritos de seus dessemelhantes? Filha mimada da vida, não sabia acautelar-se do revés, para neutralizá-lo? Almejava uma resposta cor de rosa para suas cinzentas interrogações na chamada vida prática? E, assim, de revolucionária, passava à reacionária? Tornava-se um tanto máscula no ato mesmo de impor-se como feminista? “Antes dessa história de feminismo”, ela é citada na página 256, “eu já mandava na minha vida e não dependia de nenhum homem para falar o que eu devia ou não fazer”. Sem compreender as incompreensões, tornava-se irritada e irritante, atropelando os amigos, os amantes, os colegas e o próprio público que, não raro, se decepcionava na própria adoração. Daí a perpetração de atos falhos virou uma constância, manifestada no alcoolismo, na obesidade, degradando sua talentosa criatividade, enfeiando-a fisicamente na ressaca dos desregramentos. Uma pessoa no palco das multidões e sozinha no desgostoso ensimesmamento.
Ela era também um mau caráter, no sentido mais banal e estrito da denominação? O que aprontava com os amigos, amantes, desafetos e concorrentes, denunciam o estopim curto de suas reações nervosas diante de situações até mesmo da vida cotidiana em família e em sociedade. Reação não propriamente esquisóide, mas fisiológica, como a do animal ofendido ou mimado pelo lado erógeno de sua natureza. Os gatos e cães perdem a docilidade quando acariciados como se fossem erroneamente açoitados. Se coçarmos o corpo de um desses seres, principalmente o de um gato, tudo bem, ele gosta e agradece, mas experimente coçar ao longo da espinha dorsal no sentido da nuca ao rabo: ele vira “bicho”, como se diz, e reage com os espinhos de suas unhas e dentes. Isso por que? O que é bom demais fica ruim? O que na cultura popular chamam de “dor da bondade”, referente ao orgasmo dos seres humanos, é assim previamente repelido pelos gatos e cães? Mesmo na roça (quando lá vivi) existia no meio da meninada um que imitava os frenéticos miados dos gatos na hora do bem-bom deles. No auge libidinal, quando todas as preliminares (o corre-corre pelos muros e telhados) estavam cumpridas, no momento do ímpeto crucial e final do tesão mais gritante, o macho chega a gritar quase que humanamente com as palavras por assim dizer maiúsculas, para a fêmea: “CADÊ A CALCINHA DE RENDA QUE EU TE DEI?!” E ela, não menos enfurecidamente tesada, responde: “RASGA-A, DANADO!”
Com os seres humanos também pode acontecer essa contradição, esse prazer como que à revelia? Quem ama demais quer possuir, maltratar, subjugar e, até, matar? Quantos casos a imprensa não noticia a respeito! Bernard Shaw queixava, através de um personagem (celibatário convicto) que não caia nas graças de uma mulher porque sabia que nenhuma delas aceitaria que ele possuísse uma alma incólume. Maysa também foi assim, desavisada, rancorosa, possessiva, zangada com seus inúmeros amantes. Toda sua infelicidade afetiva (fonte de sua riqueza musical) resultava dessa contradição, por assim dizer, sexo-emocional? Penso que ao autor da biografia repleta de dados vivenciais, às vezes deslustrados de quinquilharias adjacentes, faltou priorizar a parte zangada e deprimente da capacidade natural de amar e de altercar dela, de seu desequilíbrio emocional – um drama sempre caminhando para o esbarrancado da tragédia. “Adeus, logo mais eu telefono/ Eu agora estou com sono/ Vou dormir, pois amanhece”. Esta é uma das estrofes da canção “Adeus” , que ela compôs aos doze anos de idade, lembrando de longe a precocidade de Rimbaud.
Lázaro Barreto