Pessoa: Criação Dramática ou... Razão Poética?
Apesar da insistência de Fernando Pessoa em afirmar que os heterônimos equivalem a personagens teatrais, ponho em dúvida essa sua tese: escrita a peça, os personagens, esses fantasmas, abandonam o autor e se transferem para o texto; os heterônimos, no entanto, jamais abandonam Pessoa.
Desse modo os papéis se invertem: Fernando Pessoa está mais vivo em nossa mente que seus heterônimos, porque dele, sim, temos um conhecimento dramático. Ele, e não Caeiro, Reis ou Álvaro de Campos, é que é o personagem com história e drama. Ele é que, aos cinco anos perde o pai, seis meses depois perde o irmão e, em menos de dois anos, ganha um padastro; ele é que vê morrer a avó, louca, e teme ele próprio enlouquecer; ele é que, desde cedo, percebe que não consegue viver; ele é que se sente como inexistente, como uma passividade que quase nada pode, a não ser se multiplicar em personagens fictícios; ele é que, homossexual que não se aceita, desiste de qualquer vida sexual; ele é que conhece a solidão e o vazio; ele é que conhece "a amargura essencial desta vida estranha à vida humana — vida em que nada se passa, salvo na consciência dela" e que, por isso, inveja o homem comum, normal, "que sente cansaço em vez de tédio e que sofre em vez de supor que sofre".
Pode-se questionar se Fernando Pessoa era um poeta dramático, como ele se definiu, mas um personagem dramático, isso ele o foi seguramente.
A relação de um dramaturgo com seus personagens não é igual à de Fernando Pessoa com seus heterônimos, mesmo porque estes não são a rigor personagens dramáticos. Isso não significa, porém, que não haja diferença entre Pessoa e os heterônimos, que eles não existam enquanto personalidades fictícias por ele criadas ou sejam fruto de mero capricho do poeta. Não, os heterônimos são expressão necessária da personalidade de Fernando Pessoa, talvez que inicialmente como consequência de uma tendência à mistificação ou à simulação, conforme ele mesmo admite, mas que mais tarde tornaram-se parte essencial de seu universo intelectual, de sua elaboração da matéria poética.
A novidade que é a criação dos heterônimos — fenômeno único na história da literatura —, longe de resultar de uma originalidade buscada, nasce das características especiais da personalidade de Fernando Pessoa e mesmo do que se poderia designar como suas deficiências.
É por não ter nunca certeza de nada, é por desconfiar da existência do mundo material à sua volta, por não distinguir firmemente as fronteiras entre o percebido e o pensado, por lhe parecer tão real — ou irreal — o que pensa quanto o que percebe sensorialmente, enfim, por não se saber quem é nem quantos é nem mesmo se é, por tudo isso ele se projetou nesses personagens fictícios, que usam de sua mente e de seu corpo para existir ou, pelo menos, para pensar e escrever. Pode-se ainda encarar esses heterônimos com uma busca de alternativa para a visão desencantada e sofrida que se apreende nos versos de Fernando Pessoa-ele-mesmo:
''Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora''
ou
''Sou nulo dos dias vãos
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
De quem não entras na alma!''
ou
''Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena...
Eu sofro sem pena a vida''.
Esse sofrimento vazio, que não decorre das relações afetivas, das paixões e das perdas reais, esse sofrimento que dói mais por parecer fingimento que por parecer real, talvez encontre um consolo quando Pessoa se torna Alberto Caeiro e, na pele dele, vive uma vida menos doída. Como Caeiro, Pessoa aceita a realidade do mundo e se conforma com vê-la, sem se atormentar em indagações:
''Creio no mundo como um malmequer
Porque o vejo.
Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama não sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...''
Alberto Caeiro é, assim, a manifestação de uma opção filosófica implícita na negatividade da visão de Fernando Pessoa: a descrença na possibilidade de, pela razão, compreender-se o mundo. Mas, em lugar de tal verificação conduzir ao desencanto ou ao desespero, conduz, em Caeiro, à aceitação tácita da realidade. O mundo existe, está aí, basta senti-lo, uma vez que "há metafísica bastante em não pensar em nada", e mesmo porque não há o que indagar, já que:
''O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum''.
Anneliese Schmidt