CASCUDO SEM DISCÍPULOS

Todos já fomos surpreendidos com afirmações que seriam cômicas, não fossem emitidas com aparente seriedade, por articulistas pouco informados acerca de questões que se lhes deparam no exercício da opinião.

Freqüentemente, quando tratam de pessoas que exploram a cultura popular como assunto privado, cometem equívocos e erros de avaliação que depõem contra aqueles que, de boa-fé, pretendem exaltar.

Muitos insistem em nos impingir este ou aquele nome de folclorista, como sendo de legítimos sucessores de Luís da Câmara Cascudo, exaltação inócua e inverossímel, na qual desacreditamos mal se faz enunciar em artigos laudatórios que no jargão das redações chamamos de “enchimento de lingüiça”; enfim, algo inteiramente sem importância, que se faz pela urgente necessidade de preencher espaços vazios em páginas de jornais.

Ora, qualquer leitor que conheça o universo provinciano e não seja parvo de nascença, sabe perfeitamente que Cascudo não deixou sucessores, além do que toda comparação perde o sentido quando não está apoiada em dados confiáveis.

Chego até a ir mais longe, acrescentando que ele sequer deixou discípulos, o que nos levaria a admitir a existência de pesquisadores, além de qualificados, fornidos de algo mais consistente do que a mera boa intenção ou a vaidade de se fazer notar, embora sem mérito, que entre nós prolifera como matapasto e esclarece, duma maneira por vezes ridícula e exaltada, o questionável espírito provinciano que domina setores da inteligência.

Um sucessor de Cascudo seria em princípio uma pessoa aparelhada de uma profunda ciência capaz de superá-lo. Segundo a tradição corrente desde tempos imemoriais, sabe-se que um discípulo é obviamente alguém que se prepara para ultrapassar o mestre, como prova de que aprendeu e ampliou o conhecimento, o que em resumo significa dizer, em prosa vulgar, que os verdadeiros discípulos são tão raros como cisnes negros.

Ademais, exalta-se o humanista e escritor Luís da Câmara Cascudo pelo que há nele de menos relevante – o folclorista --, não obstante ser ele, como tal, um nome de merecimento universalmente reconhecido. A verdade é que ninguém ainda o superou, em profundidade e abrangência de conhecimento, nesses estudos ditos do folclore, a que ele atribuiu uma grandeza e uma objetividade de que os demais, em sua maioria diluidores, são carecidos, algumas vezes por lhes faltar a necessária erudição e, por que não dizer, o talento e a persistência necessários para ir buscar e exprimir o pensamento com suficiência de conhecimento e, por que não? estilo.

Cascudo e Richard Wagner, para citar dois exemplos distantes, no espaço e no tempo, mergulharam no estudo da cultura popular, na condição de autênticos criadores dotados de excepcional talento para observar, analisar e interpretar as fontes pesquisadas; este, para criar uma música lírica que traduz o que existe de expressivo e maravilhoso na obra e no espírito do homem que forjou a Alemanha; aquele, para fundir em profundidade o popular e a erudição numa obra canônica da qual somos todos devedores, mesmo quando não o admitimos.

Nenhum dos dois criadores e mestres, seja Cascudo ou Wagner, procedeu servilmente, apenas copiando e difundindo cantigas de boi-bumbá ou lieds produzidos pelo povo alemão. Ambos chegaram montados no talento, mas também amparados e fortalecidos numa sólida grade de estudos multiculturais que fizeram deles o que são – mestres e faróis, na elementar acepção baudelaireana.

Este o diferencial cascudiano que incomoda e exaspera a inveja e o ressentimento de ruminadores sem pasto, como um fato digno de nota: — o seu processo de criação se reporta não apenas às brumas mitológicas da nacionalidade, mas ao triunfo sobre o ceticismo e o marasmo que corroi tanto quanto a ferrugem e a maresia.

Franklin Jorge

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