A Única Oração Que Eu Conheço
“Só vos peço uma coisa: se sobreviverdes a esta
época, não vos esqueçais nem dos bons, nem dos
maus(..) Eles eram pessoas e tinham nomes, rostos,
desejos e esperanças, e a dor do último não era
menor do que a dor do primeiro, cujo nome há
de ficar...”
(Júlio Fuchik, 1980, in Brasil Debates, Testamento Sobre a Forca)
Sempre fui ateu. Não posso acreditar na hipótese de que, quem fez, fez para destruir depois. Sempre fui um emérito comunista de carteirinha e filosofia. Um marxista teórico, comunista científico e socialista-democrático, em defesa de um sentido ético-plural-comunitário, para a vida em sociedade, com um humanismo de resultados.
Sempre achei que a religião é o ópio do povo. Uma burrice pegajenta no refluxo do inconsciente coletivo. Uma antiga invenção política para pôr freios na falsa moral burguesa, que nunca foi exemplar nas suas alcovas e bastidores do poder real. Acho até que a religião teria sido inventada pelo próprio diabo, se é que ele também existe, sentado no rabo da histórica hipocrisia social. Se todo homem é um animal político, como disse o filósofo Sócrates faz mais de dois mil anos, todo homem é também um animal antes de tudo sexual e por isso mesmo pervertido e cruel. Comida, sexo e poder. Esse é o destino do homem que, como todas as coisas, nasce, cresce, tripudia sobre cadáveres e serventias de sobrevivência amoral e decadente, fica tolo, senil, esclerosado e morre. Não há nada depois da morte. Viemos do nada e ao nada voltaremos. Somos esse vazio existencial entre o antes e o depois de. Sempre pensei assim. Do pó viemos e ao pó voltaremos, parece ser a única coisa certa escrita na Bíblia.
Mas resolvi de, assim mesmo, relatar o que se passou comigo em tempos ordinários, difíceis, regime de exceção.
Vivíamos o período tenebroso das trevas de uma ditadura militar incompetente, corrupta, violenta e senil. A Canalha de 64, cantada como Redentora, e seu capitalhordismo americanalhado, bancado por setores conservadores da ala reacionária da Igreja, mais as senhoras de Santana, sórdidos empresários agiotas e amigos do alheio, e um projeto babaquara denominado hipocritamente de Tradição, Família e Sociedade, mas, na verdade, bancado por ratos olivas com coturnos, todos com medo do socialismo moreno-tropical do Comandante Fidel Castro que poderia se alastrar por toda a Latrina América terceiro-mundista, em detrimento de suspeitos interesses de agiotas do capital estrangeiro sediados no Washingtom Cloaca.
Eu, como muitos camaradas de um aparelho pego em flagrante, delatados por uns porcos empresários de grosso calibre, estávamos presos no DOPS, os chamados podres porões da hedionda polícia paulistana liderada pelo nefasto Delegado Fleury e seus chacais de antro de escorpiões que depois foi assassinado como queima de arquivo.
Eu tinha perdido bolsa na faculdade de Direito de Guarulhos (um bocó de professorzinho-major me fichara em desconfiança), também perdera emprego numa locadora de imóveis dias antes de ter sido promovido (o diretor era um janota coronel de reserva da aeronáutica), minha família foi vigiada, corríamos risco de passar fome, até que viram um artigo meu com Codinome Comando Alfa, denominado “A Corrupção Financia a Revolução” e assim eu fui levado de camburão como um bandido, seqüestrado por um bando de recos com fuça de hienas, para medo de meus amigos, familiares e inteligentíssimos colegas de esquerda. O país agonizava, era uma eterna noite com um falso verniz de arapongagem e montados milagres econômicos que tinham um alto custo social, como depois se revelara a partir de um montado medo do Jango e outras tramóias de imbecis de terno, gravata, e farda, os reacionários de aluguel fundando novos covis de salteadores.
Fichados, éramos interrogados, cobravam nomes, documentos, atentados, datas, aparelhos, panfletagens, e muita gente morreu nessa época, incrivelmente muito mais do que se sabe, se identificou, inclusive por uma ala internacional da ONG Tortura Nunca Mais.
Essa ONG aliás, era baseada na Europa, mais agora está vigente no Brasil S/A, nesses tempos de tenebroso neoliberalismo-globalizado, mais uma terceirização neoescravista com privatizações-roubos e reformas que dão flanco ao contrabando informal, e permitem aos narcotraficantes substituírem um estado propositalmente falido pela elite na sua essência básica de prover os excluídos sociais.
Diariamente vinha uma trinca de recos levar ou outro colega comuna de cela. Que era torturado de todas as maneiras. Se resistisse, voltaria a passar por outra sessão severa, de pau-de-arara a sodomia, de pancadaria e loucuras indescritíveis. Nem que eu tivesse um milhão de anos, eu esqueceria esses horrores. Muitos morriam no interrogatório. Então montavam fugas, falsos suicídios como o de Vlado Herzog, atentados, máscaras e camuflos para jogar areia na dura verdade, atirar fumaça nos crimes cometidos pela aparelhagem do estado militarista historicamente incompetente, sempre ao lado de latifundiários, estrangeiros, banqueiros, e uma burguesia decadente, amoral e insensível com as riquezas injustas, os lucros impunes e as propridades-roubos. Muito ouro e pouco pão.
Sou uma testemunha da história. De certa forma sobrevivi, na medida do possível, mesmo para assistir, com nojo, ex-marxistas bandearem de mala e cuia pro lado do inimigo, e até darem seu apoio a banqueiros irracionais, aumentando a falsa dívida externa, saqueando as empresas estatais que foram vendidas a preço de banana e moedas podres. E os piores comunistas são os falsos, de ocasião, que se abancam em cargos públicos por interesses mesquinhos, tipos ególatras como melancias, vermelhos por dentro mas verdes por fora. E como testemunha é que me cabe aqui relatar sobre a única oração que eu aprendi na cadeia, em estado desesperador.
Detido no DOPS, via chegar e sair os suspeitos de sempre, via entrar e sair um torturado vencido pelo horror, via um bando de vaquinhas de presépio levando cadáveres para desovas em cemitérios clandestinos fomentados por políticos do estilo rouba e diz que faz, eminência parda à sombra dos três podres poderes. Era o regime de exceção. Era o arbítrio. Eu senti muito na pele a dor crucial dessa época. Um determinação legal da ONU dizia que um povo podia se voltar armado até, contra uma ditadura, mas nós estávamos desarticulados e ali nos restávamos aguardando a morte, o exílio, ou as seqüelas que hoje eu sinto que são para sempre.
Pendurado num pau-de-arara, sem água, sem luz e sem pão, eu não podia dizer muito, primeiro porque era pela não-violência, segundo porque nunca tinha atentado contra ninguém, minha única arma era a palavra escrita e falada, eu era bom de dialética e sabia ocupar meu espaço denunciando, reclamando, pedindo por eleições diretas e o fim das insanidades palaciais. Se eu soubesse muita coisa, de qualquer maneira, confesso que jamais contaria, eu não era um alcagüete e sabia suportar pressões. Mas apanhei muito. Várias vezes. Quase morri. Era uma sova atrás da outra.
Lembro-me, no entanto que, por aqueles labirintos amorais e desumanos, perambulava sempre, um peregrino cândido e terno que, certamente corrompia financeiramente as altas patentes todas (que eram facilmente corrompíveis) e ali nos vinha dar sua palavra de conforto, seu apoio moral, seu largo ombro amigo, na sua tez de seda.
Esse anjo em forma de gente, era o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.
Volta e meia nós o víamos saindo de uma cela, tentando cobrar autoridades do arco da velha, entre paisanos boçais e militares babaquaras, e muitas vezes ele esteve comigo em meu solitário catre sujo de sangue seco, suor, lágrimas e um fulcro nodal de desespero.
Nunca gostei de orações, não acredito nelas. O homem e as circunstâncias, é o que vale. Nunca gostei do Pai-Nosso hebraico, muito menos da oração inventada pela Igreja das trevas em tempos profanos de cruzadas que matavam pessoas inteligentes, geniais, com medo das reformas de Martinho Lutero, e da invenção da imprensa que promovia cada vez mais a leitura da Bíblia sob diversas óticas, menos conduzidas por cabrestos abismais.
Quantas vezes ali, depois de apanhar bastante, machucado, sangrando, a pão, água e pesadelos, eu acordava sofrendo e, entre gemidos sósias, via ao meu lado o Cardeal de São Paulo. Ele me pensava como podia no rigor do momento, no apurado do trauma, com sua voz fina e meiga dizia, sempre, com a sua branquela mão direita cheia de sardas rosas no meu ombro esquerdo:
-Seja forte, meu filho. Procure suportar, meu irmão. Sê firme, amigo.
E eu o olhava ali, enorme, grandioso, sem nada que pudesse nos ligar, um padre e um comunista, uma borboleta e um escorpião, e o ouvia me dar forças, me encorajar, para que eu fosse firme, quando eu queria mesmo era findar logo, pegar de minha cinta e me dependurar num cano alto, morrer enforcado e acabar com aquilo tudo.
Para muitos ele foi um bálsamo. Para mim também. Para muitos ele foi a salvação, a âncora entre o inferno e o sonho. Para tantos ele foi o passaporte da agonia para a esperança. Um Ser Humano e tanto. Insubstituível. Nunca haverá outro como ele. É na dor, na tragédia, no desespero, no medo e na fome, que se conhece o caráter e o referencial de um homem de verve.
Confesso que nunca aprendi rezar, sinceramente ainda não acredito muito nisso.
No entanto, cresci, fiquei forte, escapei, virei escritor, fui sovado pela dura lida, e, claro, como ser humano tenho medo, tenho presságios, uma angústia-vívere, um ou outro surto psicótico, neuras, e o espírito às vezes atribulado, mais o risco do desemprego, o salário baixo, a falência dos serviços públicos essenciais, e assim até desenvolvi um medo do escuro, uma intuição de lobo acuado, um instinto tribal.
No entanto, nessas horas, vem-me à mente a imagem daquele homem santo ajoelhado ao meu lado, um ateu, e ele, Dom Paulo Evaristo Arns, é a oração em pessoa. Um santo? O sentido exato de uma prece na sua mais altaneira definição.
Então, alguma coisa em mim - meu espírito aventureiro, talvez; uma certa resiliência psicológica até - talvez uma porta para a luz, fala de mim para mim mesmo, a única oração que eu conheço, que eu aprendi na dor: Seja forte, Seja firme. E eu sinto um calor descomunal me passar pela espinha. Como se uma pilha-luz ligada no aparelho da memória recorrente, um arquivo neural que se assoma e me reconforta, me estimula, me incendeia. E me sustém ainda.
E, confesso, não há melhor oração do que a imagem e semelhança de um homem digno, puro.
Perdoem, mas essa foi a única oração que eu aprendi. Essas simples poucas palavras cruas, me dão um sentido enorme de energização. No entanto, somadas num imagético de um momento de terror, me dizem tudo, me sustentam, acho que até, intimamente, podem às vezes me ensinar técnicas de Vôos. Ou me salvar de mim mesmo.
Se Deus existe mesmo, quando for a hora do juízo final, amargedom, sei lá o quê mais, e quando eu for pesado na balança, e me cobrarem alguma falta, direi em minha legítima defesa que sei de uma oração de peso, e, certamente direi uma verdade inteira, expressando-a, recitando-a emocionado, com todo seu conteúdo de amor e luz.
Após repeti-la, curtinha que é, frase por frase (Sê firme, Sê forte!) direi que, como Oração mesmo, inteira e plena, táctil, presencial, personalizada, conheço mesmo só a exata pessoa do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.
Independente de placa de igreja, ele foi um mito, um mensageiro, um visitador, um abençoado. E então, assim espero, os anjos de Deus (certamente seus irmãos celestes), com certeza me darão o passaporte da liberdade assistida num limbo qualquer.
Num purgatório qualquer muito além desse pardieiro chamado Planeta Água, a nave-cela da escória cósmica, um verdadeiro antro sideral de escorpiões.
Silas Correa Leite