Análise descomprometida da Lira III de Tomás Antônio Gonzaga, do livro Marília de Dirceu

Lira III

Tu não verás, Marília, cem cativos
tirarem o cascalho e a rica terra,
ou dos cercos dos rios caudalosos,
ou da minada serra.

Não verás separar ao hábil negro
do pesado esmeril a grossa areia,
e já brilharem os granetes de oiro
no fundo da bateia.

Não verás derrubar os virgens matos,
queimar as capoeiras inda novas,
servir de adubo à terra a fértil cinza,
lançar os grãos nas covas.

Não verás enrolar negros pacotes
das secas folhas do cheiroso fumo;
nem espremer entre as dentadas rodas
da doce cana o sumo.

Verás em cima da espaçosa mesa
altos volumes de enredados feitos;
ver-me-ás folhear os grandes livros,
e decidir os pleitos.

Enquanto revolver os meus *consultos,
tu me farás gostosa companhia,
lendo os fastos da sábia, mestra História,
e os cantos da poesia.

Lerás em alta voz, a imagem bela;
eu, vendo que lhe dás o justo apreço,
gostoso tornarei a ler de novo
o cansado processo.

Se encontrares louvada uma beleza,
Marília, não lhe invejes a ventura,
que tens quem leve à mais remota idade
a tua formosura.


Publicado no livro Marília de Dirceu: Terceira Parte (1812).

In: GONZAGA, Tomás Antônio. Obras completas. Ed. crít. M. Rodrigues Lapa. São Paulo: Ed. Nacional, 1942. (Livros do Brasil, 5)



* Consulto ou conluio, analisando pelo contexto, quer dizer trama, enredo.


O que isso lhe parece? Imagina em que ilusão viverá Marília, lendo os românticos enredos, deliciando-se na arte, tendo contato com a "sábia, mestra História" vendo o amante "folhear os grandes livros".

Interessante esses versos: "ver-me-ás folhear os grandes livros, e decidir os pleitos."
"Pleito" aqui,  se for no sentido de demanda, ou o eu-lírico está dizendo que decidirá o que ler para si de acordo com o momento, ou mais provavelmente, decidirá o que ler para Marília conforme seu interesse pessoal ou   competência intelectual. "Iluministicamente" falando, "o que iluminar para ela":

"Lerás em alta voz, a imagem bela;
eu, vendo que lhe dás o justo apreço,
gostoso tornarei a ler de novo
o cansado processo."

O significado de "justo apreço" pode ser admiração, a problemática está na possibilidade de admirar o que não se conhece, o que não foi entendido, o que não passou pelos sentidos, em termos mais aristotélicos. Através de um quadro artístico podemos nos sentir admirados, independente de entendermos o que está sendo retratado, ou podemos ler uma poesia e achar a sonoridade agradável, mesmo sem entender patavinas.

Enquanto isso, no mundo fora da cerca do pastoreio... O pau quebra!
O trabalhador é explorado e a natureza destruída.
A imagem dos canaviais pode ser  vista através dos versos: "Não verás (...) nem espremer entre as dentadas rodas da doce cana o sumo" onde "cem cativos" trabalham exaustivamente.

"Tu não verás, Marília, cem cativos
tirarem o cascalho e a rica terra,
ou dos cercos dos rios * caudalosos,
ou da minada serra."

* Caudaloso - abundante, com muita água correndo.

O protetor de Marília lhe impedirá de ver o cenário social da época! (Coisa que o Márcio Lacerda faria).
Se a questão social for posta de lado, veremos um homem cavalheiro que só quer que sua amada dama "tome ciência" das coisas belas! Inclusive, como são antiquados esses conceitos de dama e cavalheiro!

A mulher, "formosa e delicada", ficará lendo poesias romantizadas até a "mais remota idade".
Marília certamente morrerá de tédio!

O marxista certamente diria:
"Marília! Mulher que luta! Seja a ovelha desgarrada do pastor!"

Denise Bello

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