A bacanal do esbanjamento

          Se a Humanidade e a Civilização sobreviverem aos próxios 50 anos, os historiadores apontarão nossa época como talvez o momento mais anormal de toda a História do Homem e os biólogos considerarão este o momento mais crítico da lona História da Evolução Orgânica. Nunca antes o Homem pôde comprotar-se como hoje se comporta e nunca no futuro poderá repetir o atual delírio. O comportamento atual da Humanidade pode comparar-se ao do pobre diabo que ganhou o grande prêmio na loteria e que, sem saber o que é capital e como preservá-lo, se encontra em plena bacanal de esbanjamento, seguro de que a festa não terá fim. A Sociedade de Consumo é uma orgia. Como tal ela não terá duração. O momento da verdade é inevitável. Estamos agindo home como se fôssemos a última geração e a única espécie que tem direito à vida. Nossa ética que não abacarca os demais seres, não inclui sequer os nossos filhos.
          Nossa mealomania nos cega diante dos limites das coisas. Adoramos a quantidade pela quantidade e perdemos de vista os aspectos qualitativos. Com isso chegamos a uma perfeita inversão de alvos. A tencologia, cuja verdadeira função seria a de ecravo do Homem, já se tornou seu soberano. Tão cegos e alienados estamos que aceitamos de bom grado esta escravidão. Um delegado brasileiro nas Nações Unidas, em discussão sobre a problemática demográfica, ilustrou acertadamente esta atitude ao afirmar que o Brasil necessita de mais população e de maior densidade de população para, note-se bem, criar mercado para as indústrias de bens de consumo. Não mais a tencologia para suprir as necessidades do Homem, mas o Homem para atender as necessidades da tecnologia.
          A atual forma de sociedade industrial, para funcionar eficientemente, necessita ou crê necessitar de crescimento exponencial constante. Para manter este crescimento, utiliza um vasto aparelho publicitário, apoiado em uma maravilhosa tecnologia de comunicações em massa que, por sua vez, se serve dos mais sofisticados truques psicológicos para incutir-nos hábitos de consumo que só merecem o qualificativo de irresponsáveis, hábitos nunca vistos em sociedades anteriores e insustentáveis no futuro. Apelando à frivolidade, à vaidade e à ânsia de simbolizar status fictício, criam-se necessidades fúteis e artificiais que em nada contribuem para a verdadeira felicidade humana e que, muito ao contrário, estão na base de muita frustração desnecessária.
          Com isso multiplicamos nosso impacto ambiental muito além do que exigiria a explosão demográfica. Gastamos mais matéria-prima, destruímos mais natureza, poluímos mais do que seria necessário para a sobrevivência e qualidade de vida. Basta pensar no esbabnjamento irracional de papel. Quanto bosque permaneceria de pé, quanta poluição poderia ser evitada, quanto lixo deixaria de enfear nossas ruas e praças, se nssos jornais fossem de tamanho razoável, se usássemos só os envólcuros estritamente necessários, se os escolares usassem completamente seus cadernos, se a publicidade servisse a finalidades sãs, se reciclássemos sempre que possível todo papel usado? Afinal, quem consegue ler de ponta a ponta um jornal dominical com trezentas páginas?

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          Mais importância que à qualidade biológica, damos à produção quantitativa máxima na lavoura e à durabilidade na estante do supermercado. Qualidade biológica é conceito que não tem vez no contexto tecnológico. Por isto, tudo leva seus aditivozinhos. Estes aditivos, é certo que não nos matam na hora. Tal não seria econômico. Para grandes mortandades de peixes se encontram sempre desculpas, massas de cadáveres na rua seriam outro problema. Assim, os aditivos não passam daquelas concentrações que ainda não produzem sintomas imediatos. Os estragos crônicos, a lenta destruição do fígado, o câncer, todos levam tempo para aparecer. Quem vai poder queixar-se, e contra quem? O Homem tem hoje bom controle das enfermidades infecciosas, mas aumentam vertiginosamente as doenças degenerativas. Câncer, enfarte, derrame e outras já tinge dimensões epidêmicas. O pior ainda está por vir?
          Dentro do conceito de que a Natureza aí está para ser consumida, é natural também que ninguém tenha respeito pelo real valor dos recursos. Progresso é tudo aquilo que economiza salários e aumenta os lucros. Assim, o papel carbono de um só uso é considerado vantagem. Não contabilizamos o maior esbanjamento do papel e o PCB (*) do ambiente. Poucos conseguem ver que a vantagem está só como industrial. pricaiza-se o lucro e os custos ambientais são socializados. O público paga na poluição e na futura escassez. Encurta-se a vida da Ecosfra e da Tecnosfera também. Certamente deixamos perplexos seres inteligentes extra-terrestres que nos pudessem observar com desprendimento.
          Um capital insubstituível só se destrói uma vez. Os recursos bióticos, minerais e energéticos, dos quais tão prodigamente se serve a Sociedade de Consumo, são o resultado de longa evolução geológica e orgânica que não tem retorno. As matérias-primas que dissipamos, o petróleo que queimamos, as espécies que apagamos nunca voltarõa. Fôssemos espécie realmente racional, não poderíamos estar agindo da maneira como estamos agindo.

José A. Lutzenberger


Do livro: "Manifesto Ecológico Brasileiro: Fim do Futuro?", Ed. Movimento, 4ª ed., 1986, RS (p. 36-40)

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(*) PCB - Bifenil policlorado. Uma família de substâncias quimicamente aparentadas ao DDT, com todos os seus inconvenientes toxicológicos e ecológicos. Amplamente usadas na indústria e por ela introduzidas no ambiente.

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