O professor Cortázar

Uma aluna de Julio Cortázar pergunta: "Sou brasileira e gostaria muito de saber sua opinião sobre a posição da nossa literatura". A resposta vem a seguir: "O que você acaba de perguntar me desperta uma enorme culpabilidade - e me alegro que me tenha feito essa pergunta, pois quero pedir desculpas a todos os brasileiros aqui presentes pelo fato de que, falando de América Latina, talvez eventualmente tenha citado o Brasil, mas nunca o citei de maneira direta". O escritor argentino se estende um pouco mais - e explica que os povos latino-americanos "não lemos o português" e "não incluímos suficientemente o Brasil em nossas análises". De fato, nenhum escritor brasileiro é mencionado ao longo das oito aulas de Julio Cortázar em Berkeley, no outono de 1980, agora finalmente reunidas em "Clases de Literatura" (Buenos Aires: Alfaguara, 2013, 320 págs.).

O único brasileiro lembrado pelo autor de "Histórias de Cronópios e de Famas" (1962) é dom Hélder Câmara - uma vez que o arcebispo de Olinda e Recife havia encontrado o de El Salvador para defender o direito à luta armada. Durante as aulas, ainda haverá tempo para que o escritor comente a clivagem entre "nossos vizinhos, os brasileiros, que são tão extrovertidos" e os argentinos, que demonstram "uma certa impossibilidade às vezes muito triste e muito patética (...) de nos abrirmos plenamente ao mundo", por causa de "cinturões mentais e psicológicos".

Não parece nova ou surpreendente a informação sobre o intelectual brasileiro, na sua relação com os países vizinhos, tal como transmite Julio Cortázar: ainda assim, o gesto de admitir culpa por não incluir o Brasil nas análises é tanto mais contundente quando se recorda que o país também sofreu um processo político na história recente, marcado por perseguições e tortura. Ele reconhece, em muitas páginas do livro, a opressão existente no Brasil. O que não basta, no entanto, para lhe fazer vir à mente o nome de algum escritor ou de algum livro brasileiro relevante que pudesse articular a realidade política e os méritos da ficção - como acontece, a seu ver, com o colombiano Gabriel García Márquez, o peruano Mario Vargas Llosa, o guatemalteco Miguel Asturias, entre alguns outros.

Uma parte expressiva de "Clases de Literatura" está dedicada a dimensionar o intelectual latino-americano - em especial, o da geração de Cortázar. O fato histórico da revolução de Cuba, em 1959, provoca uma "brusca revelação" na carreira do escritor argentino, então exilado em Paris: o de se descobrir, mais do que um nacional, um latino-americano. Na sua formulação, converteu-se de escritor latino-americano em latino-americano escritor. Essa nova condição lhe impôs "responsabilidade e dever" como ser político e o fez entrar em nova etapa na sua carreira de escritor.

Pode incomodar que a ideia mesma de América Latina esteja tão fortemente vinculada, para ele, ao uso da língua espanhola. A solidariedade entre escritores hispânicos do continente (que de algum modo encalacrou o intelectual brasileiro) ainda conhecerá nova expansão, quando Cortázar comenta "a literatura dessa outra nação latino-americana que é a nação do exílio". Aqui se faz referência explícita ao conjunto de escritores que se encontrava exilado em diversos países, especialmente na Europa, bem como àqueles que permaneciam exilados dentro dos próprios países. O escritor utiliza, por fim, uma formulação irônica ao comentar as forças que geram e perpetuam o injusto statu s quo presente nos países da América Latina - que caracterizam, de fato, um "stand by".

Talvez ainda seja possível corrigir uma falha didática na apresentação de "Clases de Literatura", uma vez salientado o desconhecimento do intelectual brasileiro por Julio Cortázar: o livro reúne aulas proferidas na Universidade da Califórnia, agora organizadas por Carles Álvarez Garriga. O autor de "O Livro de Manuel" (1973) trata, ao longo de oito sessões, de temas como "os caminhos de um escritor", "o conto fantástico", "o conto realista", "musicalidade e humor na literatura", "o lúdico", "Rayuela" ("O Jogo da Amarelinha", no Brasil) e "erotismo e literatura". Ao fim de cada uma das suas aulas, há tempo para perguntas, que são prontamente respondidas, ainda que de forma breve.

É bem possível que "Clases de Literatura" seja menos atraente para os que já conhecem importantes entrevistas concedidas por Cortázar, como as realizadas por Ernesto Gonzáles Bermejo e Omar Prego. A publicação de "Papéis Inesperados" (2009) - que contém uma autoentrevista - terá interesse maior, numa comparação. Mas as aulas de Berkeley sugerem tópicos que poderiam trazer à discussão novas interpretações da obra de Julio Cortázar.

Um desses tópicos é o da música. O escritor explica que muitas vezes lhe parecem insuficientes "as possibilidades sintáticas da prosa e do idioma", pois o que deseja expressar ocorre "dentro de um ritmo" que não obedece, por exemplo, à pontuação. A "presença de elementos musicais na prosa" permite que se desenvolva um conto de modo climático, quando se aproxima o seu desenlace. O texto "vem envolto em uma pulsação do tipo musical", que frequentemente agride a sintaxe, mas nunca o ritmo narrativo a ser alcançado.

Esse processo é de tal modo autoral e balizado pelo idioma que Cortázar chega a reclamar das traduções de suas obras, nas quais não é possível reproduzir aquela pulsação. O autor expressa desde uma vocação irrealizada - "eu nasci para ser músico", "me sinto um músico frustrado" - até sua grande paixão como ouvinte, projetado na conhecida faceta do melômano. Aqui não será necessário repisar a importância do jazz na escrita do autor de "O Perseguidor" e de muitos capítulos de "O Jogo da Amarelinha" - a não ser lembrar o impacto que tiveram, no escritor, o poder da liberdade de improvisação e o da escrita com base em variações criativas sobre um tema .

Vale mais ressaltar o interessante diálogo que Cortázar manteve com Vargas Llosa, escritor que "é totalmente surdo à música: não gosta, não lhe interessa, não existe para ele". A admiração que manifesta pela "prosa magnífica" do peruano persiste, apesar da ausência de vibração e de valores musicais. Bem ao contrário do que o autor de "Lucas, Seus Pianistas" procura com obsessão em sua escrita.

Ao fim das suas observações sobre música (mescladas com aportes sobre a função do humor), surge uma aluna que lhe pergunta qual seria o peso da influência de Boris Vian. Como se sabe, o escritor francês era também músico de jazz, excelente improvisador, artista de comportamento rebelde. Julio Cortázar não admite haver recebido influências, mas concede existirem "muitas analogias" com o autor de "A Espuma dos Dias" (1947): sente-se "muito próximo" e volta "a lê-lo sempre", mas conclui que a questão das influências é um problema a ser resolvido pelos críticos, não por ele. Não deixa de ser sugestiva, de fato, uma correlação até mesmo com as etapas que o escritor argentino traçou para a sua carreira - primeiramente, a estética, em seguida, a metafísica e a histórica - e a generalizada anarquia dos escritos de Vian, sobretudo na Paris onde vivia o exilado argentino.

Em "Clases de Literatura", Cortázar também reconhece não ter ido mais longe, em sua linguagem, do que em "O Jogo da Amarelinha" e admite haver regressado a uma etapa anterior da sua criação, uma vez publicado aquele livro. Seu interesse pelas drogas, por outro lado, parece limitar-se às experiências narradas por escritores, em especial o Henri Michaux de "Misérable Miracle" (1956) com a mescalina. Na reunião das aulas também se encontram contos inteiros que o escritor lê para seus alunos, antecedidos por comentários ou seguidos por eles. Surge a oportunidade de observar o autor a escolher, na sua obra, o que lhe parece relevante e de maior impacto - e, ao leitor, a possibilidade de buscar outras vias e outros ângulos de compreensã o em quem tanto se interessou por jogos de armar.

Felipe Fortuna

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