Valéry e Nerval: o eu inesgotável
As numerosas diferenças entre Gérard de Nerval (1808-1855) e Paul Valéry (1871-1945) não são apenas as da cronologia, mas sobretudo de concepção da obra literária. Para o escritor de "Les Filles du Feu" (1854), os símbolos do hermetismo - saturados de mensagens esotéricas e de vigoroso discurso místico - se transfiguravam em literatura. Já para o escritor de "Charmes" (1926), disciplina e rigor deveriam ser forças simultâneas na construção da prosa e da poesia, em repulsa a qualquer aspecto que não fosse determinado pelo intelecto.
Observa-se, no entanto, um interessante ponto comum entre os dois escritores: ainda muito jovem, Nerval publicou sua tradução do "Fausto", de Goethe, com a qual ganhou notoriedade. Já Valéry escreveu, na velhice, um "Mon Faust" (1946) que só seria publicado postumamente: livro confessadamente "sem plano", na forma de esboços que repercutem as derradeiras meditações do poeta na Europa em guerra.
Dois lançamentos da Ateliê Editorial - os "Cinquenta Poemas", de Gérard de Nerval, e "Fragmentos do Narciso e Outros Poemas", de Paul Valéry - permitem novas incursões na obra desses poetas, bem como no trabalho de tradução de poesia para o português.
A seleção e tradução dos poemas de Nerval por Mauro Gama inclui "As Quimeras", célebre conjunto de 12 sonetos, bem como as "Outras Quimeras". Trata-se de um considerável desafio tanto para o tradutor quanto para quem, com acesso ao original, procure desvendar o sentido de todo o esoterismo trazido pelo poeta. Em "Ártemis", por exemplo: "É a Décima-Terceira, agora... E ainda a primeira;/ E é a única sempre, ou o único instante:/ Pois és a Rainha, Tu! primeira ou derradeira?/ És Rei, Único, tu, ou o último amante?..."
Nem sempre, porém, o tradutor consegue resolver as surpreendentes imagens do poeta - que caíram no gosto dos surrealistas, décadas depois. No conhecido soneto "El Desdichado", espécie de autobiografia espiritual e fatídica, o quarteto inicial tem muita importância: "Eu sou o Tenebroso, - o Viúvo, - o Inconsolado,/ O príncipe aquitano em torre agora ruída./ Minha Estrela morreu; meu lude constelado/ Traz o Sol negro e o horror da Angústia desmedida". Lamenta-se que o tradutor não tenha conseguido manter a palavra "melancolia" no último verso, "Porte le Soleil noir de la Mélancolie". Essa palavra é essencial para a compreensão do estado psíquico do poeta, além de estar inserida na sofrida tendência ao "spleen" que caracterizou tantos (senão todos) poetas românticos. A ideia de um "horror da Angústia desmedida" introduz elementos estranhos ao já singular estranhamento que provocam os poemas de Nerval.
A edição dos seus "Cinquenta Poemas" mereceria maior cuidado quanto à fixação do texto original, que em alguns casos foi transcrito com erros; e, nas traduções, maior atenção com o uso pessoalíssimo das maiúsculas, que conferem à mitologia e à vaga religião esboçadas pelo poeta aspectos ainda mais fascinantes.
Desafiadora, exigente, intelectualizada, a poesia de Paul Valéry manteve decisiva influência na modernidade. No Brasil, bastaria citar a concepção de um livro como "Claro Enigma" (1951), de Carlos Drummond de Andrade, que se permite formas clássicas e indagações filosóficas, sob a égide de uma citação do poeta francês: "Os acontecimentos me aborrecem", em contraponto a uma poesia anterior de engajamento político; ou então, entre alguns outros, o poema "Fábula de Anfion" (1947) ("gesto puro/ de resíduos, respira/ o deserto, Anfion"), de João Cabral de Melo Neto, a estabelecer diretrizes de uma psicologia da composição; ou então, por fim, "um ódio e um desprezo pelas coisas vagas", o plano de "enxertar a matemática na poesia, o rigor em imagens livres", princípios que são traduzidos e divulgados pelo concretismo.
Consciente da complexa articulação entre poesia e pensamento em Valéry, o tradutor Júlio Castañon Guimarães (ele mesmo poeta de cunho meditativo) publica agora "Fragmentos do Narciso e Outros Poemas", reunião bilíngue de dez poemas do autor de "Charmes", entre os quais se encontram, além do poema que dá título ao livro, "Ária de Semíramis" e "Palma".
O último dos poemas citados, "Palma", dedicado à mulher, encerra aquele livro do poeta de maneira exemplar: trata do amadurecimento da poesia (e das obras de arte) por meio do trabalho que se dá com o tempo e com a perseverança. Seus versos de sete sílabas sugerem leveza e contenção: é o comentário final, o acabamento de um conjunto elaborado. O tradutor brasileiro é competente ao transmitir o resultado: "Por mais que se dobre afeita/ A tais bem sem contenção,/ Sua figura é perfeita,/ E os frutos seus laços são./ Admira como vibra,/ E como uma lenta fibra/ Que divide este momento,/ Decide e, clara, descerra/ Toda a atração da terra/ E o peso do firmamento".
Relembre-se como o símbolo implacável da poesia de Valéry, em "Palma", pode ter induzido o citado João Cabral a singularizar objetos da paisagem (pedra, cana-de-açúcar, bananeira) como pretextos para tratar da arte poética praticada.
"Fragmentos do Narciso", ao longo dos seus 315 versos alexandrinos, concentra parte vital das obsessões de Paul Valéry em sua poética. A imagem do Narciso, se característica de muitos escritores do simbolismo europeu, tornou-se seminal para o poeta francês. O embate consigo mesmo, o diálogo permanente e tenso entre o eu e a sua imagem refletida (um falso outro a quem era necessário questionar e dirigir perguntas), o contraste entre o Único e o Universal - eis alguns dos problemas trazidos por Valéry em seu poema. O narcisismo se posiciona no centro da obra do poeta, presente em diversas fases, tanto na prosa quanto na poesia (e o tradutor brasileiro também insere no livro o poema "Narciso Fala": "Ah! a imagem é vã e os prantos eternos!/ (...) Ó forma obediente a meus olhos oposta!").
A noção de fragmento expressa uma forma inacabada, um caráter ainda não definitivo do que o poeta pensa - e, também, o trânsito do mito de Narciso pela obra de Valéry, que o confrontava com o "inesgotável Eu".
A tradução de Castañon Guimarães é meticulosa e seguramente atenta aos desafios apresentados pelo poeta francês, não apenas com relação ao metro, mas em especial às aliterações e às assonâncias, tão comuns em sua poesia. O tradutor, no prefácio, já demonstra sensível preocupação com o seu ofício, trazendo à discussão algumas ideias do próprio Paul Valéry sobre tradução poética. Mas, sempre preocupado, escreveu como posfácio ao livro uma "Nota sobre a tradução", atraente exposição sobre a operação de traduzir Paul Valéry, na qual são elencados o gosto musical do poeta e o registro da sua voz ao declamar, entre outros aspectos que poderiam ser considerados na passagem para o português.
Do conjunto de problemas que toda tradução de poesia pode suscitar, o tradutor opta por um "microtrabalho das aproximações sonoras" e por um genérico "mecanismo de compensação" a fim de mostrar, no outro idioma, que os versos franceses encontraram semelhança...
Como já se afirmou, a tradução de "Fragmentos do Narciso e Outros Poemas" mostra zelo e consciência. Por isso mesmo, teria sido importante dar maior atenção a um conjunto de palavras que se encontra no fulcro de um poema que trata do Narciso e do narcisismo. Trata-se do grupo formado por "eau/ eaux/ onde" (água/ águas/ água). Paul Valéry faz uma combinação aparentemente aleatória com as três palavras ao longo do poema.
Na primeira aparição, "Je ne troublerai pas l'onde mystérieuse" ("Não turvarei a água em jogo misterioso"), o verbo turvar não transmite a necessária ideia de que a água estagnada não pode ser agitada ou tocada, caso contrário a imagem de Narciso desaparecia da superfície (como acontece no último verso, "Passa, e num tremor quebra Narciso, e foge..."). Nos versos 59 a 61, a palavra francesa "onde" aparece três vezes, formando um núcleo por si só: mas, tangido pelas exigências de rima, o tradutor prefere "remanso" para o verso "À cette onde jamais ne burent les troupeaux!" ("Nenhum tropel jamais bebeu desse remanso!").
Duas vezes o tradutor prefere traduzir "onde" por "vaga", quando "das águas" e "às águas" seriam plenamente aceitáveis. Afinal, em dois versos, Júlio Castañon Guimarães se resigna a traduzir "onde" por "onda", cujo sentido em português é notavelmente distinto do francês literário e mais arcaico.
"Fragmentos do Narciso e Outros Poemas", com seus dez poemas, constitui atualmente a reunião mais generosa de poemas de Paul Valéry em língua portuguesa, uma vez que outras edições se limitavam a apenas um longo poema. Torna-se uma referência, pois, a partir de um trabalho lento e gradual que permite mirar com atenção tanto o eu do poeta quanto a imagem do seu tradutor.
Felipe Fortuna
Texto publicado em: "ValorEconômico", de 4/4/2014
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