UMA TROCA DE DESENCONTROS
As cartas do poeta ateu e do crítico católico
Sem fé, sem religião, sem Deus: eis o interlocutor do pensador católico Alceu Amoroso Lima (1893-1983), o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-87). Foi ele, o poeta, quem deu início a uma correspondência agora reunida em “Drummond & Alceu” [Editora UFMG, 278 págs., R$55]: aos 27 anos, agradecia o envio da revista “A Ordem” e se culpava por não haver escrito uma carta após receber a primeira série dos “Estudos” (1927). Confessou, então, que a sua possível ingratidão era apenas “uma prova a mais da minha irremediável incapacidade epistolar”.
Começava assim um diálogo mais ou menos constante, entre 1929 e 1982, que pode bem ser considerado uma troca de desencontros. Quase dez anos mais velho do que o autor de “No Meio do Caminho”, Alceu Amoroso Lima vinha acompanhando -e, sobretudo, valorizando- a produção dos escritores modernistas. O poeta, ainda jovem e prestes a estrear em livro com “Alguma Poesia” (1930), lhe escrevia de maneira resoluta: “Você é mesmo um dos raros críticos realmente severos e honestos que conheço”.
Os dois homens poderiam debater nas cartas trocadas as obras literárias que surgiram a partir da década de 30 -como ocorreu, por exemplo, na imprescindível correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Mas o jovem poeta do “Poema de Sete Faces” (“Meu Deus, por que me abandonaste/ se sabias que eu não era Deus/ se sabias que eu era fraco”) abre um fosso já na primeira carta: “Sou dos maus, dos piores católicos que há por aí. (…) Sinto pouca disposição para crer, e um contato extremamente doloroso que tive com os jesuítas me afastou ainda mais da religião”.
ANGÚSTIA
Faltava cumplicidade entre Drummond e Alceu. A troca de desencontros é marcada, sobretudo na primeira fase, pela angústia do poeta, que busca orientação em momento de aguda crise, logo em seguida à sua estreia em livro, quando admite estar preocupado com “a solução de uns certos problemas freudianos que enchem a minha vida e dos quais eu tenho que me libertar, sob pena de suicídio (em que tenho pensado inúmeras vezes, mas sem a necessária coragem)” – escreve em carta de 1º de junho de 1931.
Alceu Amoroso Lima, por sua vez, está longe de tratar de temas freudianos: invoca, quase sempre, o processo da sua própria conversão ao catolicismo, sob a égide do pensador Jackson de Figueiredo -e age, em muitas cartas, como se devesse também converter outros amigos, sem dar maior atenção à singularidade do que havia sido enfaticamente declarado: a origem familiar e a pulsão sexual do poeta.
Resta a Carlos Drummond de Andrade reconhecer o território delimitado dessa amizade com o crítico literário mais velho: por isso mesmo, torna-se mau correspondente por meio de longos intervalos entre uma carta e outra; e se mostra apenas respeitoso e cordial diante da defesa que Alceu Amoroso Lima faz da igreja e seus corolários. O poeta admite: “Sou muito fraco para segui-lo, muito indeciso para traçar qualquer outro [itinerário], muito perplexo sobretudo. Não creio que ‘busque sinceramente a casa do Esperado' como a sua caridade cristã escreveu n' ‘A Ordem', nem creio que lá chegarei nunca” (carta de 22 de março de 1932). São os dois escritores, afinal, que ficam no meio do caminho, sem que exista o esperado encontro.
O pensador católico se esquiva das perguntas que lhe faz o poeta, o que é tanto mais estranho quando se percebe serem de natureza religiosa. Drummond insiste: “Não consigo compreender aqueles que dando tudo o que têm de melhor a Deus (como você) dele não recebem a paz”. Silêncio -o que talvez demonstre que o mau correspondente não é apenas aquele que não manda cartas, mas também aquele que não responde ao mandar cartas.
FIRMEZA
Essas esquivas, traduzidas pelas omissões de parte a parte, podem às vezes assumir gestos mais firmes e visíveis. É o que acontece, por exemplo, em 1936, quando o poeta se recusa a assistir à conferência “A Educação e o Comunismo”, proferida pelo pensador católico justamente no prédio onde o autor de “Poema que Aconteceu” trabalhava. Em carta dirigida a seu chefe, o então ministro da Educação Gustavo Capanema, o poeta colocou o cargo à disposição, seguro de que não poderia seguir adiante com aquela “orientação doutrinária”.
É que a troca de desencontros não se limitava ao plano religioso: invadia também a seara política, na qual ocupavam os seus respectivos espaços o integralismo de Alceu Amoroso Lima e o comunismo do poeta, o futuro autor de “Elegia 1938? (“Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”).
Na fase inicial da correspondência, o integralismo é defendido sem inibição pelo crítico literário: amalgama-se à defesa de um catolicismo que “é uma doutrina de ordem e hierarquia”, em que a “autoridade é um elemento essencial” -e o “espírito católico verdadeiro” (itálico do autor da carta, de 1929) é o que falta ao Brasil. Alceu Amoroso Lima escreveria uma longa carta a Gustavo Capanema, em 1935, na qual tratou, em tom de advertência, da “impregnação comunista de muitos sindicatos e de alguns elementos do Ministério do Trabalho” e defendeu, como antídoto à desordem, a Ação Católica Brasileira.
Não é mesmo surpresa que o poeta não tenha comparecido à conferência do ano seguinte. Tampouco surpreende que Alceu Amoroso Lima, em 1979, quando o ex-ministro da Educação se aposenta, tenha escrito: “Nada nos uniu politicamente, mas tudo intelectualmente nos aproximou”. A síntese formulada pelo crítico se ajusta bem à relação mantida com Carlos Drummond de Andrade, dando-se ao advérbio “intelectualmente” o sentido mais raro de um convívio civilizado e fraternal de escritores que, afinal, estampavam artigos e críticas, crônicas e poemas nas páginas dos jornais -sem recorrer a ataques pessoais.
FAVORES
Uma parte substancial e dolorosa da correspondência é dedicada a pedidos de emprego, recomendações, indicações de nomes, diversas solicitações à máquina burocrática. Aqui também se observa a troca de desencontros, considerando-se que Alceu Amoroso Lima é infatigável nos seus pedidos -geralmente curtos, telegráficos- ao então chefe de gabinete do ministro da Educação.
Sucedem-se os nomes das muitas pessoas que precisam de algum favor governamental, em geral registrados pelo poeta em fórmulas como “muito estimaria surgisse outra oportunidade para servir ao seu recomendado”, “razão para que o pedido do seu recomendado seja anotado, com sincera simpatia, até melhor ocasião”, “no momento não se vagou nenhum dos cargos mencionados na petição de que você me remeteu cópia”, entre tantas outras. Mais raramente, Carlos Drummond de Andrade também recorre ao amigo para recomendar alguém “muito ligado à minha família, em Minas, (…) a quem eu desejaria sinceramente servir”.
O conjunto enfadonho desse tipo de correspondência, ao longo de muitos anos, salienta a estrutura e as estratégias tão agudamente estudadas por Sergio Miceli em “Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920-1945)”.
São exemplos do enquadramento ideológico realizado por intelectuais católicos, da constituição de um mercado central de postos públicos, da conformação de uma elite intelectual e burocrática. E talvez essas informações sobre o comportamento de intelectuais que detiveram altas funções na burocracia estatal sejam das mais importantes nessa correspondência. Não se discutem livros. E há sempre receios de inviabilizar a amizade pela exposição explícita das convicções religiosas e políticas.
A anotação das cartas, realizada por Leandro Garcia Rodrigues, é correta e atenciosa -mas não escapa a alguns desequilíbrios. As notas de natureza biográfica são por vezes excessivamente longas, quase verbetes de enciclopédia. Por outro lado, faltam informações que poderiam ser importantes para a contextualização das cartas. Não se sabe a que “nota interessante de Augusto Frederico Schmidt” o pensador se refere (pág. 87).
Tampouco se sabe se foi publicado “o elogio que ontem lhe fez o Manuel Bandeira” (pág. 124). Não há maior referência ao texto “A Pedra da Gávea”, de Alceu Amoroso Lima, numa carta escrita em 1972. Não se sabe qual artigo do crítico, em 1980, mereceu elogio e carta de Carlos Drummond de Andrade.
Apesar de testemunhar a troca de desencontros, o leitor dessa correspondência poderá descobrir outras preciosidades: por exemplo, uma “Ode a Jackson de Figueiredo” escrita pelo poeta e conhecida apenas por estudiosos. Ou o fato de que o poema “A Máquina do Mundo” -alto momento da descrença do poeta- fora publicado justamente na revista católica “A Ordem”, em 1949, alguns anos antes de ser estampada em “Claro Enigma”. Em 1983, Alceu, em artigo elogioso a Drummond, lembrou que “a máquina tem um Maquinista…”. Era a ironia final de uma relação sem futuro.
Felipe Fortuna
Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 8 de março de 2015
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