Eu bebo, sim
Anos atrás, quando a grande maioria andava pensando que o consumo de maconha e cocaína dava de 10 a 0 no de álcool, o Centro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) divulgou pela Internet dados assustadores, que contrariavam semelhante ideia: nas 24 cidades mais populosas de São Paulo, existiam 981 mil dependentes dele, da pinga mais vagabunda ao vinho mais sofisticado, representando 6,6% de seus moradores da faixa entre 12 e 65 anos. O Cebrid, que pertence à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), detectou ainda, entre outras coisas, que os alcoólatras eram mais de 50% dos viciados do Estado, contra menos de 40% dos fumantes e quase 7% de pessoas que no mínimo uma vez haviam experimentado maconha ou cocaína.
Essas informações, a princípio, puderam confortar os que davam a vida por um bom trago e se sentiam livres para continuar na batalha, mas os exemplos de complicações decorrentes do álcool cresciam a cada dia e não se limitavam aos casos de cirrose hepática, muitas vezes fatais.
Sem querer bancar o superior e levando em conta que, como todo o mundo, já acompanhei de perto determinadas maluquices de pessoas queridas, fui obrigado a lembrar que elas não surgem do nada, pelo contrário, resultavam em geral de frustrações acumuladas ao longo de suas existências.
Muitos cobrem viciados de carinhos ou mostram simpatia por suas gracinhas, porém é também verdade que quase nada podem fazer para transformá-los, mesmo porque normalmente somos avessos a ouvir conselhos. Mas há no cinema pelo menos um clássico, pena que bastante antigo, "Farrapo Humano" (Lost Weekend), de 1945, assinado por Billy Wilder, que ilustra bem a decadência e o desespero de certas vítimas do alcoolismo. Trata-se de uma história de Charles Jackson sobre um escritor bem-nascido, frustrado e dipsomaníaco, que cai numa farra que dura cinco dias e vai parar numa clínica de recuperação de drogados. A famosa crítica americana Pauline Kael destacaria, em sua análise do filme (posteriormente reunida com outras no livro "1001 Noites no Cinema"/5001 Nights at the Movies, com versão brasileira da Companhia das Letras), cenas que ainda hoje estremecem qualquer espectador: o desespero do herói ao sentir uma incontrolável vontade de beber durante a ária de abertura de "La Traviata", "Libiamo"; e sua terrível caminhada pela Terceira Avenida, numa tentativa de passar para a frente a máquina de escrever, quando as lojas de penhores se achavam fechadas para o Yom Kippur. O falecido Ray Milland ganhou por ele o Oscar de melhor ator e o argumento, também premiado, traz a assinatura de Charles Brackett e Billy Wilder, sim, o famoso diretor do filme. No Brasil tivemos algo parecido, mas sem a mesma força, muito pelo contrário, "O Ébrio", com um conhecido cantor dos velhos tempos, Vicente Celestino.
A verdade, contudo, é que de cirrose morre bem mais gente da classe pobre, que se contenta com aquela pinga produzida sabe-se lá onde. Isso não estava naquela pesquisa do Cebrid mas nós conhecemos perfeitamente. A própria Organização Mundial de Saúde estimava à época que 10% da população mundial fossem dependentes de álcool mas a verdade é que no combate a esse vício (?) não se usavam os recursos que se voltavam contra o tabagismo, por exemplo, com publicidade permanente na TV. O Poder Público já foi bem mais incisivo no combate ao álcool do que hoje em dia, especialmente quando começou a se falar em bafômetro e nos cuidados que se deveria ter ao dirigir. Tudo fogo de palha: se houve bafômetro para valer algum dia, como na música, ninguém sabe, ninguém viu.
Não fique, porém, com a impressão de que, em meu modo de encarar as coisas, quem bebe merece o escárnio do mundo inteiro. A preocupação deve estar voltada apenas para os exageros, desses de cair no chão, que muitas vezes geram brigas e acidentes, quando não até mortes. Cá entre nós, vai bem um chope, um vinho, um uísque, uma pinga daquelas. O que não se quer é que as pessoas estraguem sua vida com as drogas, e o álcool em excesso é uma delas. Se, no entanto, por trás de minha argumentação lhe pareceu haver algum traço moralista, mil desculpas.
Wladyr Nader