Hoje poderá ocorrer o começo do fim do direito do trabalho no Brasil
O Brasil está tão sombrio, que nem sombras mais existem. Generalizou-se o embrião envenenado da política, que torna impróprias para consumo todas as decisões do governo; proletarizar ainda mais a classe trabalhadora brasileira não será nenhuma porta para o paraíso, para a terra prometida à nação por algumas cabeças tresloucadas.
Hoje, um equívoco monstruoso deverá sair da Câmara dos Deputados. A generalização do trabalho terceirizado. A institucionalização dos gastos, os equivalentes aos intermediários do trabalho rural quase-escravo ou escravo. Aquele dono do caminhão que livra o dono da agricultura do vínculo empregatício, nem salário paga, porque diz assumir as despesas dos empunhadores de enxada nos armazéns. E o lavrador fenece, morre aos poucos mais de vinte anos, com suas mãos rotas e peles enrugadas pelo sol, pelo suor e pelo cabo grosso.
Hoje a economia brasileira estará recepcionando gastos por todos os lados, em todos os campos da economia. Terceirização. Haverá uma empresa intermediária em grande parte do processo produtivo, inclusive para a atividade fim, principal. E um único sindicato, dos terceirados, esfrega as mãos desde a manhã. As empresas também se livram do vínculo empregatício. As intermediárias pagarão, obviamente, salários ínfimos, porque dos salários dos trabalhadores será tirado o lucro dos espertos. Não há armazéns, mas é comparável a tristeza de vida que se abaterá sobre os trabalhadores urbanos.
Basta constituir uma empresa de "terceirização". O que justifica a interposição de terceira pessoa no processo produtivo. À constituição de tais empresas bastará um capital mínimo de 250 mil reais, mas não precisarão gastar um centavo, salvo o custo de arregimentação de quem chora pelas ruas à procura de um emprego, e o custo de alguns fiéis burocratas. Seus lucros serão altíssimos. Não à toa o projeto foi despertado depois de dormitar por dez anos na Câmara. Os interesses escusos, inclusive de poderosos parlamentares da base aliada do governo, serão vistos em muito pouco tempo. É o Brasil voltando as agruras operárias do tempo do Manifesto Comunista.
Será Temer Kerensky? Não cremos, até porque não estamos em guerra, não há organização global da classe obreira, nem intelectuais, malgrado nossa discordância de seus fundamentos, do porte de Carlos Marx, Lênin e Trotsky; que, apesar do verniz filosófico-cultural, produziram o maior fiasco utópico da história, sem contar a vitimização de milhões de camponeses sob os fuzis de Stálin.
Segue-se que terceirização de todas as atividades equivale a um "delirium tremens". Será a revolta de uma multidão sem rumo, talvez em greve geral, tudo de trágico nesta quadra de nossa história, talvez para enterrá-la de vez.
A Câmara dos Deputados brasileira, hoje, 23 de março de 2017, poderá destruir séculos de elaboração acadêmica, teórica e experimental dos trabalhadores e seus sindicatos, no plano mundial, ao imaginar uma poção mágica e bruxesca para a nação brasileira. Só nos resta rezar para prevalecer o bom senso, com a rejeição desse projeto temerário.
A ignorância é o pior dos males. Porque te cega e diminui a capacidade de empatia, de compreender o próximo. Alguém que acha exagerado seu amor pelo seu bicho de estimação, alguém que acha a depressão, frescura, alguém que diminui o outro pela opção sexual não ortodoxa — e o que não é a ortodoxia mais que a padronização? São pautas de bazófia sem levar em conta os sentimentos do outro, são a empáfia ao julgar a dor alheia ou a opção alheia. A construção do ser humano é complexa, mas o processo de desumanização pode ser mais simples, basta que a intolerância em doses homeopáticas ou não anule o outro que não tem opções iguais às suas. Regimes totalitaristas tentaram em larga escala impor essas condições, e enquanto fracassarem resta uma chama de esperança da humanidade, da empatia, da tolerância, da não metaforização da alma gêmea, da centelha de esperança das partes serem um todo.
Terceirização e desumanização
"Não te dei, ó Adão, meu rosto, nem um lugar que te seja próprio, nem qualquer dom particular, para que teu rosto, teu lugar e teus dons, os conquistes e seja tu mesmo a possuí-los. Encerra a natureza outras espécies por mim estabelecidas. Mas tu, que não conheces qualquer limite, só mercê do teu arbítrio, em cujas mãos te coloquei, te defines a ti próprio. Coloquei-te no centro do mundo, para que melhor possas contemplar o que o mundo contém. Não te fiz nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal, para que tu, livremente, tal como um bom pintor ou um hábil escultor, dês acabamento à forma que te é própria". (Picolo de La Miranda, "in" "Reflexão Ética Sobre a Dignidade da Vida".
Superados os governos que nos afundaram em pântano profundo, mas presentes seus efeitos, não por isso devemos ser acríticos no processo de resgate do bem do País e de nosso homem.
A terceirização desumaniza porque cria o terceirado, talvez reduzido "às outras espécies por mim estabelecidas".
Façamos abstração do atentado à isonomia material. Como trabalhador se segunda categoria, sem vínculo, sem identificação, sem compromisso com a empresa que se vale de sua força de trabalho, esta é a única coisa que parece importar. O trabalho não é algo espiritualizado. Logo, passamos a maior parte de nossas vidas engessados no mundo material, grosso e tosco.
A terceirização consagra essa brutalidade do homem. Não mão inversa dos que consideram o trabalho parte da essência humana. Sem trabalho, criativo e consciente, o homem não é homem, pelo menos na acepção que adotamos, cremos que em boa companhia.
Porque ficar satisfeito, realizado, o terceirizado, com sua obra? A qualquer momento poderá estar em outra empresa. Esse aperfeiçoamento não faz parte de sua natureza humana. E, indiretamente, com reflexo sobre os efetivos, tomados do medo de demissão e não das esperanças compatibilizadas com as esperanças da empresa. Ambos homens partidos ao meio no plano espiritual ou psicológico, no consciente e no inconsciente. Não é esse tipo de andrógino ser desfigurado que deve povoar a Terra.
Nossa Constituição assenta como preceito fundante o valor social do trabalho. Não se confunde o princípio com salário e outras contrapartidas materiais. Tem em mente essa espiritualidade do labor.
A Lei Complementar nº 7/70 (quem diria?) fala em "integração do empregado na vida e no desenvolvimento da empresa". Para seus fins, é certo, mas o valor incrustrado na norma é um dos "princípios implícitos" de direitos de nossa Carta Política. Assim como a "proibição de retrocesso" dos direitos sociais, explícitos em outras Cartas Constitucionais.
A Carta Encíclica "Laborens Exercens", divulgada pelo Papa João Paulo II por ocasião do 90º aniversário da "Rerum Novarum", diz que "somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo com ele a sua existência sobre a Terra. Assim, o trabalho comporta em si uma marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma pessoa que é pessoa numa comunidade de pessoas; e uma tal marca determina a qualificação interior do mesmo trabalho e, em certo sentido, constitui a sua própria natureza" (Prólogo).
Contra todos esses princípios, ao terceirizar, a Câmara dos Deputados do Brasil transformou-o num imenso zoológico.
Amadeu Roberto Garrido de Paula