Cultura Frente ao Terror

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Escritor e jornalista pede sensibilidade contra a violência

A guerra contra o terrorismo internacional que encabeça os Estados Unidos, em resposta aos ataques brutais contra o World Trad Center e o  Capitólio, é uma atitude pouco competente, assustadora nos seus propósitos irracionais, terminando por conduzir a operações militares clássicas como a Guerra do Golfo. Há um sentimento de vingança, de paranóia social, de manipulação. É a busca do inimigo invisível, fantasma, tantas vezes alimentado na história, e que leva à dor e à morte.
Só é possível defender a civilização de forma civilizada. Uma operação de guerra batizada com o bíblico nome de Justiça Infinita é no mínimo ridícula. Não se pode levar toda essa tragédia como uma guerra santa, como uma guerra entre Oriente e Ocidente, como querem nos fazer crer. É infame ver como as grandes cadeias de televisão mostram imagens de muçulmanos de longas barbas, fanáticos, com o Corão na mão pedindo o regresso à Idade Média. É uma provocação perversa, resultando em ofensivas aos imigrantes árabes, que são insultados, humilhados, cuspidos, golpeados. O mundo árabe-muçulmano merece também respeito e  justiça. Não podemos incentivar uma invasão ao Afeganistão, um país absolutamente desvastado há três décadas pela guerra. Qual seria o benefício para a humanidade?
A perda de tantas pessoas no irracional ataque de setembro e as  ferozes imagens das poderosas torres ruindo são para chorar, mas a guerra contra os civis não é uma novidade. Existe na África, na Chechênia e em grande parte do mundo. O ataque contra os civis norte-americano é o mesmo. Cada dia morrem seres humanos em Gaza e Cisjordânia, assim como na Argélia. O terrível é que de 80% a 90% dos mortos nessas guerras são civis, mulheres e meninos em boa parte. “Por que a vida de um menino iraquiano não vale o mesmo que a de um menino norte-americano?”, pergunta o intelectual árabe Jaafar Kansoussi. É uma pergunta digna de reflexão.
Devemos ter cuidado com a improvisação de “bodes expiatórios” do poder global, o inimigo pode estar mais próximo e ser menos exótico do que se pode querer fazer crer. Os leitores de novelas policiais já o sabem: tudo é direcionado para determinado suspeito, quando na verdade o criminoso é o que menos aparenta sê-lo. Os governos escondem muitas verdades que o povo não conhece até anos depois ou nunca fica sabendo. Pearl Harbor, por exemplo, onde morreram mais de duas mil vidas humanas, não foi planejado simplesmente pelo Japão como nos ensinaram durante décadas, Roosevelt é que provocou estrategicamente o ataque dos japoneses porque queria lutar ao lado da Grã-Bretanha contra os aliados de Hitler. Evidentemente que o astuto  multimilionário saudí Ossama Bin Laden merece castigo, se não por essa suposta infâmia por outras; o que não devemos aceitar é uma guerra sangrenta ou uma invasão ao território afgano.
Paquistão, que tem mais de 140 milhões de habitantes e é a única potência nuclear islâmica, atua como protetor oficial do movimento taliban que governa em Afeganistão, um país que tem as fronteiras fechadas, como uma prisão. Esses talibans  protegem o terrorista internacional mais procurado. Devem ser aniquilados por isso? A comunidade internacional poderia se movimentar pela paz, contra o choque de civilizações alertado por Huntington. O Afganistão, um país maior que França e com uma população de 32 milhões de habitantes, não sabe o que é a paz desde 1979, ano que foi invadido pelos soviéticos. Nesta sociedade baseada nas identidades tribais, de clã, e etnicamente heterogênea,  75% da  população não sabe ler e vive da produção de ópio e da ajuda humanitária. É também um povo montanhês duro de roer, que somente foi conquistado pelo mongol Gengis-Khan, resistindo ao cerco do império britânico no século 19 e aos russos no 20. Significando que a vingança da primeira potência do mundo, provocaria uma catástrofe.
Que podemos esperar de um presidente tão pouco lúcido como Bush, que desfaz de tratados como o acordo anti-míssel com a Rússia? Quando governador do Texas aprovava tranqüilamente a pena de morte. Seu pai já dizia que desaparecendo o comunismo, o novo inimigo seria o islão. Na Segunda Guerra, os inimigos eram o Japão e a Alemanha nazista. Hoje são Bin Laden, os muçulmanos, os afgãos. É a cultura do ódio e desprezo pela vida humana. Uma cegueira povoada por agentes secretos e gordos interesses. Os norte-americanos se sentem vulneráveis pela primeira vez na história. Uma traumatizante surpresa de serem surpreendidos. Estrelas como Warren Beatty ou a inglesa Julie Andrews temem tomar aviões para a Europa, cancelando participações em festivais de cinema. Shows de músicos são adiados. Uma comédia sem graça com personagens patéticos.
No dia 11 de setembro, quando os  pilotos suicidas chocaram três aviões comerciais contra edifícios emblemáticos norte-americanos, assassinado mais de seis mil civis, foi um duro golpe para o FBI, a CIA, o Departamento de Inteligência de Defesa e outros organismos, fragilizando a defesa do presidente Bush, baseada no escudo de alta tecnologia contra supostos ataques de mísseis. Só que desta vez o inimigo real não é a tecnologia, e sim o fanatismo, e os fanáticos dispostos a morrer não são detectados por nenhum escudo anti-míssil. Humilhado, Bush não perdoa o bizarro e espetacular êxito técnico terrorista, pondo em causa uma sociedade que gasta 30.000 milhões de dólares ao ano em espionagem. O país que deveria saber mais coisas acerca das redes terroristas e suas tramas também é vulnerável. Com a América atacada a fragilidade da nossa civilização ficou evidente. Os meios de comunicação atuam como cúmplices de uma possível guerra, enganando-nos a todos, apelando para a comoção e a indignação irracional. Querem fazer crer que o bandido Bin Laden é sensivelmente a manifestação da maldade pura, o demônio reencarnado, o anti-Cristo. Um rótulo até o momento sem fundamentos concretos. Bin Laden é um produto da CIA, que o treinou para recrutar muyahidines, soldados da guerra santa, para derrotar os soviéticos nos anos 80. Até 1989 ele trabalhou para a CIA. Como se vê ele não é um sujeito com boas intenções, mas esse thriller policial de terror, se visto com olhos bem abertos, levaria a senhores do mal superiores. Isso numa sociedade cada vez mais militarizada. Os grandes vilões, os  inimigo ocultos que estão sorrindo entre nós, são os desequilíbrios de poder, riqueza e monopólio de informação.
A  leitura do mundo deve ser revisada: paz perpétua, sociedade transparente, justiça e trabalho para todos. A supremacia bombardeada mostra que a estrutura poderosa (política, informativa, econômica, tecnológica) está num beco sem saída. “Temos que eliminar nossos aspectos mais frívolos e superficiais. Os Estados Unidos tem vivido num sonho, dedicados ao dinheiro e aos prazeres, com a idéia de que a história se acabou”, alertou o autor de Leviatan, o nova-iorquino Paul Austen. “Vi dois dias de guerra na maior cidade da América. Imaginem uma sucessão desses dias ao largo dos anos, suas vidas feitas só de dias como esses. Alguma lucidez histórica quiçá nos ajude a compreender o ocorrido”, declarou a ensaísta Susan Sontag. Esse espetáculo de morte e a queda do World Trad Center, um dos ícones do século 20, devem ser interpretados sem raiva  e com inteligência, não uma inteligência artificial à maneira dos robots de Spielberg. A realidade não é uma novela barata de Tom Clancy, mesmo quando existem semelhanças, como em Dívida de Honra (1995), uma trama de 828 páginas com um final apocalíptico, em que um boeing 747, conduzido por um piloto suicida, se chocava no Capitólio de Washington aniquilando a classe dirigente norte-americana.
Eduquem-se as pessoas para que sejam racionais, e que as religiões defendam um interesse comum para evitar rivalidades que resultem em violência, em massacres. A humanidade deve se apiedar, comover-se, por todos os milhares de civis que vivem em guerra em muitas partes do mundo, evitando novos conflitos. É preciso também uma resposta intelectual, livros e artigos que analisem cuidadosamente a situação. A cultura pode ser usada como resgate, como salvamento de futuras vítimas. O que se passou nos EUA não deve ser repetido nas sociedades árabes ou em qualquer outro lugar. Fico contente com a negativa do Brasil em participar com soldados neste conflito. Prova que ainda resta uma esperança.
O triste ataque aos EUA obriga a mudar muitas idéias com as quais o Ocidente vinha manejando. Não se deve cultivar a tensão que existe entre o Ocidente e o mundo árabe. Busquemos um conceito de paz e de um futuro digno. Seria prudente evitar uma resposta militar, tão solidária entre os políticos conservadores, melhor uma cooperação entre vários países sensatos que seja possível conter o temor por meio de uma compreensão, abandonando ao mesmo tempo a provocação a uma cultura oposta a nossa e aos nossos planos de superioridade. O primeiro a fazer é mudar de canal quando um estúpido ao ser entrevistado na CNN, diz com voz suave e assustada: “Não entendo como o resto do mundo quer o mal de cidadãos norte-americanos normais como nós”. É o diálogo inicial de um filme pouco talentoso onde já sabemos o final.

Setembro, 2001.

Antonio Júnior
de Barcelona

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