A inquisição materialista

O terceiro milênio começou agora. O mundo não é mais o mesmo depois de 11 de setembro. Diante dos fatos, ainda saindo do estado de choque em que todos entramos, procuramos explicações.
O que me veio àcabeça foi a teoria dos sistemas. Uma célula é um sistema. Qualquer órgão do organismo vivo é um sistema; o organismo como um todo é um sistema. A família, a cidade, o país, e o mundo, tudo faz parte de um grande sistema. As diversas peças do sistema funcionam para dar vida e características ao todo. Esta totalidade é afetada por falhas em qualquer parte, em qualquer engrenagem.
O mundo e a civilização humana estão doentes há muito tempo e, é claro, conflitos e ajustes de crescimento e desenvolvimento sempre existiram e existirão, na busca do equilíbrio e homeostase. Fazem parte da dinâmica em funcionamento e em constante evolução.
Com o episódio nos EUA, o que realmente aconteceu foi que a defesa de ajustamento desse organismo, que protege o todo e suas características básicas para o contínuo funcionamento do organismo, falhou. Sobreveio um surto de loucura, um estado psicótico devastador no sistema em vigência.
É claro que as defesas que falharam e se romperam não foram as defesas contra um ataque que vem de fora do organismo. Destas, os Estados Unidos têm, como ninguém, e ainda querem ter mais, mesmo depois do fim da Guerra Fria.
As defesas que falharam são aquelas que não conseguiram mais aplacar os conflitos internos e inconscientes da nossa civilização. Das entranhas da terra, da aridez dos desertos e das cavernas de montanhas esquecidas e distantes da nossa percepção, brotou a revolta do sistema contra si mesmo.
A falta de ética, de solidariedade que o egoísmo sedimentou na sociedade ocidental, a superficialidade dos valores e das relações, a atração pelo supérfluo e o consumismo por si só na busca da felicidade e satisfação pessoais no mercado frente à miséria do mundo do outro lado formam um composto que podia, a qualquer hora, explodir. A exploração do todo em função de poucos.
A história é clara. A miséria humana nunca foi pouca e hoje, após memoráveis avanços científicos e tecnológicos em praticamente todas as esferas, ela é maior do que nunca. A exploração do grande sobre o pequeno, a indústria da guerra fabricam também revolta.
Os americanos de um modo geral não sabem o que é o mundo além de suas próprias fronteiras. Participam, fazem e ganham guerras sem nunca terem sido feridos em sua própria carne. Como nação poderosa e vitoriosa, quer vingança e essa vingança nada mais será do que outro sintoma da mesma doença. Será fruto da ignorância sobre as causas do processo em desenvolvimento que aqueles três aviões mostraram para o mundo, e uma tentativa de manter o sistema funcionando sobre as mesmas bases que foram implodidas.
Os Estados Unidos e o mundo ocidental desenvolvido entraram em estado de choque com os acontecimentos. Chefes de Estado de toda a parte e mais de 90% da população americana querem retaliação. Querem a guerra. dizem que, assim que o responsável for identificado, será punido exemplarmente. Mas, ainda atônitos, se perguntam: quem é o inimigo?
Fala-se na Terceira Guerra Mundial. Mas contra quem? Contra Bin Laden? Contra o Afeganistão? Contra os pilotos mortos?... Realmente não vai ser nada fácil descobrir que o inimigo somos nós mesmos! Bin Laden é apenas representante das forças internas que romperam a superfície falsamente colorida pela negação total da realidade dos fatos. Não há efeito sem causa!
Matar milhões de afegãos não será resposta sadia à explosão dos templos simbólicos do estabelecimento. Será apenas mais um sintoma secundário, um acting out na tentativa de não encarar as verdadeiras causas: o desequilíbrio, a revolta do reprimido, excluído, sufocado, mas ainda vivo e forte para implodir as amarras do inconsciente coletivo.
Esse rompimento trouxe pânico e paranóia, como está claro que seria o caso. Todos passaram imediatamente a se proteger mais. Os mecanismos de segurança e as forças armadas estão em alerta máxima. A Otan se manifesta bravamente, a solidariedade dos países do Primeiro Mundo é unânime.
Vamos nos prevenir contra novos ataques? Acho desnecessário. O grande ataque, do qual ainda não captamos todas as suas repercussões, já aconteceu!
O presidente George W. Bush fala em retaliação e está apoiado e pressionado para tal. Ele é um caubói, filho do pai, de temperamento aparentemente agressivo e pouco inteligente, ex-alcoólatra e está regredido a níveis mentais primitivos. Chega a tentar equacionar o problema como uma questão apenas do bem e do mal. Sua prepotência, retrato vivo do povo que representa, tem feito com que ele se negue inclusive a participar da tentativa de equacionamento das graves questões ambientais do planeta, recentemente postas à mesa. O chamado desenvolvimento americano não pode ser interrompido, nem questionado.
O mundo não é a maravilha que o americano comum pensa que é. A globalização em andamento nas áreas da economia e do comércio está globalizando mais do que se imaginou. Globalizou-se tudo desta vez.
É bastante provável que a reação armada seja inevitável, diante das dificuldades de parar para observar as próprias entranhas. Só nos resta torcer para que independentemente da reação imediata, aos poucos a humanidade possa, com a conscientização da impotência das superpotências, e por força da depressão e do vazio, visualizar e perceber e então tentar digerir estas emoções expostas. Mudar as relações entre suas partes e seus objetos. Caso contrário, sobrarão apenas ações isolados de novos hippies, abandonando as rotinas capitalistas do Ocidente pela desesperança, ou quem sabe, também a inquisição materialista.

Antonio Siqueira Júnior

Fonte: http://www.opopular.com.br/opiniao/default.asp
Enviado por: Fernando Tanajura Menezes

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