Há uma perigosa confusão no ar e nas páginas da
imprensa depois do pedido (ou pressão) do governo Bush para que
a mídia censurasse a transmissão de novas ameaças
de Osama bin Laden. A atitude da conselheira de Segurança Nacional
dos EUA, Condoleezza Rice, estaria pondo em risco a liberdade de imprensa
e a credibilidade da cobertura dos fatos no Afeganistão por não
permitir o acesso da opinião pública à íntegra
das gravações da rede Al Jazeera, do Qatar.
Cuidadosas aspas postas pela nossa imprensa na diplomática reação
dos executivos da mídia americana ao pedido do governo Bush deixam
a impressão de que instituições da democracia ocidental
como o "New York Times" e o "Washington Post" estariam prestes a jogar
décadas de coragem editorial e independência -inigualáveis
em qualquer "grande imprensa" do mundo- na lixeira da xenofobia e da subserviência
política.
O tratamento gráfico e editorial dado à censura americana
a Osama bin Laden, em alguns casos, foi curiosamente semelhante ao que
a imprensa ocidental costumava dar à mordaça imposta a grandes
e famosos dissidentes do nosso tempo como Alexander Soljenitsin, Andrei
Sakharov, Salman Rushdie, Nelson Mandela, Lech Walesa e Vaclav Havel.
Não parece importante ressalvar que, em vez de projetos políticos
libertários, o censurado Bin Laden tenha a oferecer, nos tais pronunciamentos,
apenas o filme antigo do ódio fundamentalista e da propaganda política
em forma de ameaça. Não parece também relevante esclarecer
que Bin Laden é, no máximo, uma expressão criminosa
e oportunista das contradições do mundo globalizado, jamais
o melhor intérprete do colossal desafio de enfrentá-las e
muito menos o guia genial que vai nos indicar o caminho da justiça
e da liberdade.
O equívoco, para usar um exemplo brasileiro, é semelhante
ao de achar que o debate sobre a criminalidade e a violência urbana
em nosso país depende do ideário político e das políticas
públicas que Fernandinho Beira-Mar tenha a oferecer à sociedade.
Em contraposição à sugerida capitulação
dos jornais e TVs dos EUA, percebemos uma mal contida torcida da nossa
imprensa pela rede de TV Al Jazeera, do Qatar, a única oficialmente
autorizada pelo Taleban a transmitir ao vivo do Afeganistão. Não
há referência ao fato de que a Al Jazeera -ainda que faça
um telejornalismo ousado, se comparado ao oficialismo submisso e mentiroso
das emissoras do mundo árabe- tem uma credibilidade equivalente
à da "Hora do Povo", do nosso MR-8, quando o assunto é Bin
Laden ou o Taleban.
A Al Jazeera exibe, sem cortes, todos os sermões de Bin Laden.
E exibe na íntegra porque sabe que o público dela, formado
basicamente por fundamentalistas e opositores aos monarcas árabes
pró-americanos, adora ver e ouvir qualquer ataque aos governos autoritários
da região e aos EUA. Saber se Bin Laden afinal assume ou não
a autoria dos atentados do dia 11 de setembro -uma obsessão para
nós, do Ocidente- simplesmente não é relevante para
eles. Os americanos, a julgar pelo material de propaganda exibido entre
um e outro programa jornalístico da emissora, se resumem a um bando
de encapuzados da Ku Klux Klan.
Os repórteres da Al Jazeera fizeram bom jornalismo quando entrevistaram
e puseram contra a parede o primeiro-ministro britânico, Tony Blair.
Pena que não possam usar a exclusividade do acesso ao Taleban para
fazer com Bin Laden o que as redes americanas fazem rotineiramente com
Bush, o que BBC e ITN fazem há anos com Blair e o que a imprensa
brasileira faz todos os dias com FHC e seus ministros.
Não será, portanto, o acesso à cobertura "independente"
da Al Jazeera e à íntegra dos "pronunciamentos" de Bin Laden
que vão garantir uma cobertura completa, precisa, equilibrada e
abrangente do que está acontecendo no Afeganistão. Quem espera
que a história seja escrita por "briefings" do Pentágono
ou de gravações feitas na escuridão de cavernas afegãs
deveria se lembrar de que cobrir uma guerra sempre foi e sempre será
tarefa difícil e arriscada, ética, editorial e fisicamente.
Cabe às empresas jornalísticas e a seus profissionais
avaliar a estrutura, a logística, os contatos e as doses de coragem
pessoal disponíveis para a velha e boa busca de fontes independentes
e, no caso, alternativas não apenas aos videogames e fotos de satélite
americanas, mas também à cantilena fundamentalista de Bin
Laden e de seus hóspedes. Não é uma decisão
fácil. O Taleban já avisou que qualquer jornalista encontrado
em território afegão sem autorização será
tratado como soldado americano.
Enquanto continuamos reféns dos "briefings" do Pentágono
e das ameaças em vídeo de Bin Laden, não custa lembrar
que a boa cobertura jornalística, muitas vezes, só depende
do profissionalismo de quem a coloca no ar.
Ernesto Rodrigues
Fonte: <http://www.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2010200110.htm>
Enviado por: Fernando Tanajura Menezes