Censura e terrorismo cultural
"Meu primo: você pode tremer e mudar de cor, reprimir sua respiração no meio de uma palavra, recomeçar e deter-se ainda, como se estivesse perdido e louco de terror?" (Shakespeare, Ricardo 3º)
O rei tirânico, nessa passagem da peça, ironiza o símile antigo da política  enquanto espetáculo teatral. Nela, os dominados exibem apenas terror,  intimidados pelo príncipe. Dentre as coisas nauseantes do universo regido por  Ricardo 3º, salienta-se a perda completa da palavra autônoma. Todos se calam  diante dele e são cúmplices da própria desgraça e da ruína coletiva. Esse  ambiente pestífero fornece as cores das teorias políticas que justificam a  censura e a repressão da escrita e do pensamento. Contra ele se insurgiram estadistas e filósofos que definiram a democracia e  a liberdade.
Para os defensores da repressão, como Hobbes, as pessoas privadas dependem do  arbítrio exercido pelo soberano, o único que pode censurar a vida pública.  Spinoza nega isso e afirma que o Estado não supõe a perda dos direitos  individuais. Ele identifica soberania e povo, soma de indivíduos livres, o  que resulta em limites para os governantes. Estes não teriam direitos acima e  além dos cidadãos comuns. O pensador não aceita atenuar a liberdade de  escrita.
Convidado para a Universidade de Heidelberg, ele recusou, pois foi-lhe dito,  em carta oficial, que o eleitor palatino lhe daria "ampla liberdade de  filosofar, desde que não criticasse a religião estabelecida". A sua réplica  serve para todo universitário honesto: "Desconheço os limites do meu  pensamento e não posso garantir que nunca irei incomodar a religião  estabelecida".
Numa época de choque religioso, como a nossa, a lição spinozana mostra-se  estratégica. A propaganda oficial norte-americana alardeia que o terrorismo é  "islâmico". Na verdade dois fundamentalismos hoje se enfrentam: um se reclama  do Alcorão e outro parasita os evangelhos. Entre as crenças, balança o pensamento de quem deve dedicar-se à pesquisa, e não aos slogans das seitas,  dentro ou fora do poder estatal.
Se é grave a censura que controla a imprensa mundial, a começar pela  americana, pior é o silêncio dos universitários diante do estupro à liberdade  de pensamento, arrancada com a chantagem do terrorismo, pela direita dos EUA.  Spinoza afirma, no "Tratado Teológico-Político", que a censura favorece  bandidos e prejudica honestos. O Estado sob censura é o campo do medo e da  tristeza, segundo o filósofo. Qualquer regime político, se confisca  liberdades, deixa de ser democrático. Lembremos a frase de um pai da nação  norte americana: "Quem joga fora a liberdade essencial para obter uma pequena  segurança não merece nem liberdade nem segurança" (Benjamin Franklin, em  1759).
É crime de genocídio, hoje, aceitar em silêncio a censura e a autocensura que  ocorre na maior parte da mídia, reduzindo seu papel ao de mera propagandista.  Todas as desculpas para o assassinato da informação pública pressagiam  desgraças e servilismo inauditos. De certo modo, todos repetimos a  experiência descrita por Shakespeare em "Ricardo 3º", todos, em nossos papéis  políticos, parecemos loucos e perdidos pelo terror. A censura na mídia a está  matando enquanto forma de pensamento e de pesquisa. A universidade caminha a  passos rápidos para aceitar limites à pesquisa e ao debate. Some o direito de  busca, de erro, de exame.
Entramos no século 21 sob um dos maiores ataques à razão, feito por  terroristas de Estado ou de seitas "religiosas". Após o golpe de 1964, feito  sob patrocínio dos EUA em nossa terra, ressurgiram a censura, as prisões, a  tortura e as violências que desgraçaram o país na ditadura Vargas. Os mesmos  personagens, como Filinto Muller (que arrancava confissões aplicando ferros  em brasa na pele dos adversários), definiram seu mando soberano. Tudo em nome  da "segurança". Muitos jornalistas e universitários ficaram silentes diante  da barbárie "cristã e ocidental". Algumas vozes tiveram coragem e ergueram a  voz para protestar. Entre elas, a de Carlos Heitor Cony e a de Tristão de  Athayde (o católico Alceu de Amoroso Lima).
Este cunhou a expressão certa para os atos dos militares no poder:  "terrorismo cultural". Ele era um homem lúcido e honesto, ou melhor, um homem.

Roberto Romano

Fonte: <http://www.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2010200109.htm>
Enviado por: Fernando Tanajura Menezes

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