Réquiem para José
Mauro
Eu entrava na adolescência quando José Mauro, com quatro
anos, veio morar juntamente com sua família no antigo prédio
de três andares onde eu residia. A rua era calma, arborizada, com
belos casarões. Nenhum tipo de comércio existia nas redondezas.
Logo observei que o temperamento dele diferia das outras
crianças. Chamava atenção por sua fixação
em animais das mais variadas espécies. Passamos então a ter
como companhia no prédio, aves, cães, gatos, e a medida que
José Mauro crescia as diversidades nos surpreendiam. Certa tarde
surgiu com uma pantera. Lembro os olhos lindos dela. Daí, vimos
preguiça, tamanduá e, pasmem: pingüim! Esse hóspede
foi o que exigiu a verdadeira alavanca da fraternidade, pois necessitava
de gelo o tempo todo e assim a comunidade compareceu solícita. Mas
no segundo dia teve que ser devolvido ao seu habitat natural.
O tempo passou. Quando ele entrou na adolescência, a virada de
sua vida foi algo que marcou intensamente a minha memória. José
Mauro, juntamente com seu irmão mais velho, entrou para o mundo
das drogas. Daí, para a prática de furtos, roubos, assaltos
a mão armada. Sequer minha bicicleta foi poupada. Logo eu, que ele
fazia questão de dizer que era a melhor amiga dele.
Muitas vezes me chamava dizendo querer conversar. Aí ficávamos
na varanda do segundo andar e ele gentilmente me servia "Drink Dreher"
em taças, e contava piadas. E ele mesmo se jogava no chão
e ria, ria das próprias piadas e eu acabava rindo dele. Nunca demonstrou
sinal algum da vida que de fato levava e que se traduzia em bandidagem
da pior espécie.
Ele me constrangia ao receber os presentes que me oferecia .
Ora carne de cabrito que roubava no morro,ora revistas roubadas no jornaleiro
da esquina, ora litros de leite roubados na padaria. Esses eram os roubos
leves. Mas eu sabia que era roubo e assim jogava tudo no terreno baldio
ao lado do prédio. Intimamente me angustiva esse estado de
coisa. Todos sabiam de suas incursões nesse universo perigoso.
Tudo ia crescendo ameaçadoramente. Policiais começaram
a entrar no prédio, a procura de objetos
roubados, ou com ordem de prisão.
A nossa paz acabou.
Em meio a tudo isso, a figura de D. Elisa, a mãe dele, comovia
pelo sofrimento. Não era, contudo, poupada pelas críticas,
pois numa atitude passiva sempre recebeu os objetos em casa, aceitando
as desculpas estapafúrdias de José Mauro. Tapeçarias,
cristais, artesanatos orientais, bebidas finas, tudo isso era parte do
arsenal dele. Assim, ela ficou com a pecha de culpada.
A família acabou se desestruturando. O casal se separou, os
irmãos foram cada um para o seu lado. José Mauro e a mãe
foram morar em outro estado e ficamos muitos anos sem notícias
deles. Certa manhã, recebemos surpresos a visita de D. Elisa. Ficamos
felizes. A cabeça branquinha mas os mesmos traços de beleza.
Após as conversas iniciais ela nos surpreende dizendo ter tido duas
grandes perdas. A primeira, seu ex-marido, Antonio Carlos, homem que na
verdade havia sido o grande amor de sua vida. Um enfarte o fulminara, após
exaustivas buscas para descobrir autoria de tentativa de assassinato de
José Mauro. Não resistiu às tensões.
Sobre a segunda perda, ela fala com o olhar perdido, as lágrimas
rolando e os lábios trêmulos. José Mauro, ainda ameaçado,
decide fugir, pois temia acima de tudo pela segurança da família.
Preparara sua mala deixando-a num canto e saindo para se despedir da cidade
que certamente não tornaria a ver depois da fuga. Ela fica na janela
e o vê dobrar a esquina. Espera dias, meses, anos, até sentir
a certeza do nunca mais.
Estamos na banheira, enchendo-a de gelo para preservar a vida do
pingüin, D. Elisa com um prato cheio de sardinha. A gente ri, pois
o pingüin é engraçado e inquieto...
Minha alma parece se enregelar com o enrêdo. Prefiro voltar ao
passado para me preservar....
D. Elisa numa tentativa de conformação, diz: "Ele procurou
esse fim! Ele procurou...". Abraço-a e digo: vamos lembrar dele
naquele velotrol vermelho que ele tanto gostava quando era um menininho
inocente? Ele sorri, aquiescendo. Todos sorriem.
Uma brisa entra pela janela parecendo pacificar os corações
tão machucados. Corações dessa margem e também
lá do outro lado...
Belvedere
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