"Allons enfants de la patrie, le jour de glorie et arrivé" ...
A voz vibrante e ritmada da minha inesquecível professora de história
da sexta serie, enchia-nos de emoção e plenitude e nos incentivava
a cantar, a plenos pulmões, a famosa Marselheise, o hino nacional
da França.
Éramos vinte pré-adolescentes, na faixa etária de
doze anos, que nos deixávamos encantar por aquele fértil
período da história da humanidade, onde a efervescência
dos ideais de justiça e liberdade dominava o velho continente europeu.
Minha saudosa professora era verdadeiramente uma pessoa extraordinária.
Com o seu jeito dinâmico e alegre, amava a sua profissão e
adorava falar sobre a história da França, pintando em cores
fortes o episódio da Revolução Francesa.
Ela foi certamente um importante personagem da minha história estudantil;
um daqueles heróis anônimo, que portando a alcunha de professor
no final da década de 70, contribuiu, com dedicação
e competência, para que o ensino público em nosso país
alcançasse altos níveis de qualidade, fato que infelizmente
hoje não podemos mais atestar.
Naquela época eu me encantava com a língua francesa, talvez
por sua métrica perfeita, ou mesmo pela sua sonoridade suave. Foi
durante aquelas aulas aguardadas com tanta expectativa, que ouvi pela primeira
vez, alguém falar de um ideal constituído por três
palavras, que se constituíram no principal combustível que
alimentou e sustentou a chama da Revolução Francesa :- Igualdade,
Fraternidade e Liberdade.
Ficava inebriado ao ouvir minha dileta professora discorrer sobre o assunto,
e às vezes tinha a impressão de que ela realmente vivera
naquela época gloriosa, tamanha a eloquência com que abordava
os principais eventos daquele movimento libertário.
Para nós, crianças do interior, recém apresentadas
à senhora puberdade, o que ouvíamos durante aquelas aulas
era apenas uma confirmação dos nossos risos, abraços
e sonhos mais secretos, pois ainda não estávamos contaminados
pelas regras desse sistema cruel que nos oprime e controla. Regras que
nos são impostas quando atingimos a maioridade sob a falsa aparência
de receita para alcançarmos o ilusório sucesso na vida. Como
dizia o filósofo Raul Seixas "Foi tão fácil conseguir,
e agora eu me pergunto e daí ?".
Hoje, decorridas mais de duas décadas daqueles anos dourados, sinto
que já perdemos a ingenuidade e a pureza de coração
que tínhamos outrora, intoxicados que fomos pela necessidade da
busca, a qualquer custo, do conforto material e tecnológico, principais
objetivos de vida dessa insossa sociedade moderna.
Percebo no mundo atual que quanto mais aumenta o conforto material de uns
poucos, mais a fome e a desesperança assolam as multidões.
Quanto mais avançamos na conquista do conhecimento tecnológico,
maior o numero de guerras e atentados terroristas que ceifam vidas inocentes.
Quanto mais exaltamos a razão e o intelecto do homem que hoje já
se prepara para viajar até outros planetas do sistema solar, maior
a quantidade de analfabetos no mundo que assistem a morte dos seus ideais
mais legítimos.
Onde ficaram guardadas aquelas três colunas, chamadas de Igualdade,
Fraternidade e Liberdade, que alimentaram os sonhos da minha juventude,
e que foram erigidas no século das luzes com a finalidade de sustentar
esse decadente edifício atual chamado sociedade?
Quais foram os arautos, após a Revolução Francesa,
que buscaram defender e propagar esses três ideais que juntos se
propunham a serem as colunas mestras de uma sociedade perfeita?
Analisando a história com imparcialidade, podemos até admitir
que o Comunismo, buscando seus fundamentos na Igualdade, acabou propagando
os ideais igualitários, tendo como objetivo maior construir uma
sociedade pautada na distribuição uniforme dos bens, onde
todos seriam beneficiados, sem privilégios de qualquer ordem.
Todavia, no afã de atingir o seu intento, o sistema comunista esbarrou
num ângulo da realidade que deixou de ser considerado pelos seus
mentores. Em determinado momento do seu contexto histórico, relegou
a segundo plano o fato de que cada ser humano tem um potencial individual
e diferenciado, que deve ser estimulado e acima de tudo respeitado . Os
comunistas, em sua busca quase obsessiva pela afirmação dos
seus postulados, pregando a igualdade como contraposição
ao sistema capitalista, acabaram impondo suas idéias por meio da
força que aprisiona, ao invés de utilizar-se da consciência
desperta que liberta. Todo o potencial individual do ser humano que deveria
ser estimulado e utilizado em benefício da coletividade, era suprimido
de forma equivocada em nome dessa mesma coletividade.
Em função disso, não obstante o seu esforço
em tornar realidade os princípios respeitáveis da igualdade
entre os seres humanos, o que resultou em um importante aprendizado sobre
a nobre arte de repartir, os arautos comunistas, com o cerceamento da liberdade
individual, acabaram não conquistando a eficiência necessária
na arte de produzir. Como a liberdade é um dos atributos essenciais
para que o ser humano possa viver em plenitude, a queda do muro de Berlim,
em 1984, significou o rompimento, a abertura das portas de um decadente
viveiro chamado comunismo, onde os pássaros viviam de forma igual,
cada qual com sua ração diária de alimento e água,
mas eram infelizes porque não tinham a liberdade individual para
voar.
O Capitalismo por sua vez buscou se eleger o arauto da Liberdade, cantando
esse ideal em verso e prosa e utilizando seus atributos como substrato
para construção de uma pretensa sociedade perfeita.
A famosa estátua da Liberdade, dominando a costa leste norte americana,
é o exemplo maior do estimulo máximo que os sonhos de liberdade
inerentes a cada ser humano podem atingir. A busca tenaz por esse ideal,
acabaria transformando o Capitalismo num sistema extraordinário
de geração de recursos, já que, ao contrário
do Comunismo, buscava estimular ao máximo o potencial criativo individual
do ser humano.
Isso acabou tornando o modelo capitalista de tal forma atrativo, que ele
passou a ser o sistema econômico e político mais preferido
e adotado em todo o mundo . Todavia, os artífices do capitalismo,
também acabaram se esquecendo de um ponto fundamental para que lograssem
pleno êxito em seus objetivos. Alimentados por um desejo alucinante
de produzir exclusivamente riquezas, esqueceram-se de estimular o conceito
universal da igualdade, segundo o qual, todos os membros da grande pirâmide
social que participam da atividade produtiva têm direito a usufruir
os benefícios gerados por essa mesma atividade.
Se por um lado os capitalistas, através do cultivo da liberdade,
adquiriram uma fantástica habilidade em saber produzir, por outro
lado não conseguiram lograr êxito no aprendizado fundamental
do saber repartir. Foi assim que em um determinado momento da sua história,
o Capitalismo, sustentado pela sede insaciável de poder da minoria
hegemônica que domina e controla todo o sistema financeiro mundial,
transformou-se num dragão esfomeado que, agindo de forma avassaladora
e cruel, consome, no fogo da sua ambição, as débeis
vidas de milhões de seres humanos, cujo único mal praticado
foi um dia terem sonhado em viver dignamente.
Com o Capitalismo reinando soberanamente no mundo após o desaparecimento
quase total do Comunismo, terminamos de forma catastrófica a última
década do século 20, sob a égide do fenômeno
da globalização, onde números alarmantes de desemprego,
violência, fome, suicídio, mortalidade infantil e guerras
nos mostram o ambiente nefasto e desolador que a própria humanidade
construiu ao longo desses anos.
Sob o peso ainda do terrível atentado terrorista ao World Trade
Center em Nova York, nos EUA, e oprimido talvez por um sentimento de desesperança,
uma pergunta surge espontaneamente dentro mim: - Onde foi que erramos ?
O que faltou para que pudéssemos transformar em realidade os ideais
da revolução Francesa? Existirá ainda algum caminho
alternativo que nos leve a construção de uma sociedade da
qual realmente possamos nos orgulhar?
Em meio a esse turbilhão de pensamentos, procurando serenidade para
a mente e refrigério para o coração, busquei inspiração
na fonte daqueles puros ideais que animaram a minha juventude, e me refugiei
nessa réstia de luz chamada esperança.
Recordei-me das minhas leituras sobre o suave peregrino de Assis, Francisco
Bernadonne, que durante seus êxtases divinos dizia ao irmão
Sol e à irmã Lua: - Abram meus olhos, quero ver a Luz!
Esta é uma grande verdade. Necessitamos urgentemente abrirmos os
olhos e passarmos a perceber a luminosidade de um mundo novo que está
surgindo, descortinando um cenário totalmente diferente do atual,
onde a moeda não é um fim e sim um meio e a felicidade consiste
mais em servir ao próximo do que em adquirir vantagens para si mesmo.
Para isso, ao invés de nos determos nessa visão decadente
e corrompida do atual sistema que nos rege, devemos aderir e estimular
às novas iniciativas sociais que acenam para um futuro cheio de
esperanças renovadas.
Podemos citar como exemplo desse novo tecido social, a ação
de alguns movimentos comunitários que, de forma ainda tímida,
começam a espalhar pelo mundo um novo conceito de auxílio,
privilegiando muito mais "o ensinar a pescar" do que o "entregar o peixe"
. Tendo a educação integral do cidadão como uma das
suas bandeiras fundamentais, investem, através dela, na libertação
da consciência dos grilhões da ignorância e no resgate
do sentimento de humanidade inerente a cada pessoa. Representados por instituições
filantrópicas e organizações não governamentais
(ONG), seus membros são cidadãos comuns que talvez, cansados
de observarem, do conforto de seus lares, tanto sofrimento e injustiça,
se uniram com a intenção de não somente auxiliar os
menos favorecidos, vitimados pelas desigualdades sociais, mas para também
discutir, de um ponto de vista mais abrangente e ético, questões
cruciais para a sobrevivência da nossa civilização
como por exemplo, a preservação do meio ambiente, a fome
no mundo e as guerras.
Analisando as ações desses movimentos sociais, começamos
a perceber que eles nos oferecem as pistas que faltavam para que pudéssemos
identificar a origem dos erros que conduziram a humanidade a esse caos
no qual estamos mergulhados.
Por meio de suas ações desinteressadas em favor de outrem,
eles trazem à tona a lembrança da desprezada e esquecida
Fraternidade - a terceira coluna fundamental da tríade idealista
que fomentou a Revolução Francesa .
Quem foi o arauto da Fraternidade ao longo do século passado?
Porventura alguém tem clamado por ela?
Em verdade, essa coluna mestra, sustentação inigualável
para a Igualdade e a Liberdade, foi totalmente esquecida pelo ser humano
quando da formação desse edifício social que hoje
se encontra em ruínas . Dominado pela cultura do meu, do seu e do
eu, o homem moderno colhe hoje os frutos amargos de suas ações
egoístas, olvidando sua natureza essencial que demonstra sermos
todos irmãos em humanidade.
A Fraternidade é o antídoto eficaz, contra os efeitos perniciosos
do mal gerador de todos os males que sempre assolaram a humanidade — o
egoísmo. O pesadelo desse monstro chamado egoísmo, presente
em nossas ações, pensamentos e palavras, tem sufocado todos
os sonhos de Igualdade e Liberdade.
Resta-nos então, como derradeira alternativa para nossa sobrevivência
enquanto espécie, buscarmos, protegidos pelo escudo unificador da
Fraternidade, essa luminosa oportunidade que se descortina, de podermos
elaborar um novo sistema político, econômico e social, que
incorpore o melhor do Capitalismo que aprendeu a produzir, ao melhor do
Comunismo que conquistou a sabedoria do repartir.
Restaurando o pilar da Fraternidade como base das nossas ações
diárias, poderemos lograr êxito na construção,
nesse terceiro milênio, de uma sociedade que privilegie mais o comungar
do que o consumir.
Após essas reflexões, um sorriso de alívio brota espontâneo
em minha face, pois sei que existe um caminho, uma saída para todos
nós. Trilhando o caminho auspicioso da Fraternidade, com certeza,
poderemos construir uma sociedade mais justa e mais equânime, devolvendo
ao homem o paraíso da alegria e da esperança que há
muito tempo perdemos.
Ao pensar em todas essas possibilidades o meu ser se regozija, e cheio
de esperança no porvir, relembro com alegria aquelas manhãs
estudantis, onde a luz do sol nunca se punha, os sonhos nunca envelheciam
e a voz sempre cantava de forma igual, livre e fraterna : "Avante filhos
da pátria, o dia da glória está chegando ..."
Emmanuel Chácara Sales