AS COVAS DE FRANCO

Mais de sessenta anos do final da Guerra Civil e quase trinta da morte do General Franco, passando pela libertária “movida madrilenha” e a complexa Uniao Européia, os espanhós expoem suas feridas através de livros, filmes, documentários na tevê e espaço na mídia impressa. Um dessas feridas mais dolorosas, alerta para um número macabro: trinta e cinco mil pessoas assassinadas pelo regime franquista durante e depois da guerra da década de 30, e enterradas em fossas coletivas e anônimas. Superando a dor, o medo e o silêncio, os parentes exigem os restos dos cadáveres, para que sejam resgatados e identificados por legistas e antropólogos. O poeta Federico García Lorca, o símbolo de todos os mártires do fascismo em Espanha, decompoe-se numa dessas covas infames. Segundo Ian Gibson, na sua excepcional biografia sobre o autor de “A Casa de Bernarda Alba”, um dos crimimosos, Juan Luís Trescastro, “alardeaba ruidosamente de haber participado no sólo en la detención, sino en la muerte de Lorca. “Acabamos de matar a García Lorca – se jactaba la mañana del asesinato -. Yo lo metí dos tiros por el culo, por maricón”. Mesmo assim, pediu ao pai do poeta uma considerável quantia para salvá-lo da morte certa. O rico senhor, iludido que o filho ainda vivia, desembolsou o resgate pedido. O cemitério invisível de Lorca, no campo granadino de Alfacar, visitado pela escritora Marguerite Yourcenar, recebeu dela tais palavras: “Nao se pode imaginar uma sepultura mais formosa para um poeta”. Nao é o que todo mundo pensa. Com o apoio de escritores, atores, cineastas e músicos, associaçoes para a recuperaçao da memória histórica organizam atos solidários contra a impunidade, pedindo os meios necessários para exumar, identificar, praticar provas legistas e entregar as famílias os restos da vítima. É uma luta heroíca contra o esquecimento amargo e injusto. Algo assim deveria ser reabilitado no Brasil. Seria impagável ouvir artistas recordando os anos de chumbo; desaparecidos lembrados, assim como os carrascos; censuradas obras literárias, musicais e teatrais relançadas, independente do valor artístico. É mais fácil esquecer o passado ingrato, mas muito mais valente enfrentar os fantasmas, para que as ditaduras e seus massacres monstruosos nao contaminem o presente. Todo mundo sabe disso, nao é novidade, e mesmo assim as novas geraçoes nao sao esclarecidas sobre o passado recente – só para nao ir além do sanguinário século 20. O escritor inglês Martim Amis, que faz parte do meu livro “ArtePalavra – Conversas no Velho Mundo”, acredita na memória, provocando celeuma com “Koba el Temible”, lançado recentemente para o leitor espanhol. Trata-se de uma coleçao de observaçoes e testemunhos ao redor de uma idéia central: os inimagináveis extremos que o totalitarismo estalinista foi capaz de chegar. O cruel (qual deles nao é?) ditador soviético Stalin, entre outras barbaridades, ceifou vidas de escritores e poetas fantásticos. Assim como Franco enfiou dois tiros no cu de Lorca. Lorca está morto, enterrado (e talvez desenterrado em breve) e vive em livros, na imprensa, nao somente devido ao talento inquestionável (é o melhor poeta em língua hispânica, me perdoe os fas de Neruda), como também ao assassinato bizarro. Sou daqueles crentes que o esquecimento nao é o contrário do rancor, só é o contrário da memória. Na Andaluzia, a cada imigrante africano detido ou afogado na difícil travessia do Estreito de Gibraltar, recordo dos 90 mil mouros expulsos da regiao e outros tantos massacrados em intermináveis batalhas no século 13. Uma barbaridade pouco recordada. Os heróis da história geralmente levam a marca da embromaçao oficial e patriotismo cheira a fanatismo e sangue. O mundo é para todos. O importante é respeitar e compreender. Desenterrar atrocidades é uma boa forma de abrir a boca, pedir paz, formar uma corrente poliglota por um mundo melhor. Ou a humanidade, prisioneira do consumismo e do vazio, caminha para o fim e nada podemos fazer? Poderia responder-me, meu caro leitor? O evidente é que o séulo 21 começou muito mal. Se abriu uma nova era, a do terrorismo. E nao se trata somente de Al Qaeda. Existe como um culto ao massacre. O século anterior foi dominado por uma espécie de concurso de pesadelos. A Guerra Fria poderia ter acabado com a aventura humana, porém nao foi assim. Agora sabemos que o mundo dito civilizado terá que sofrer ainda muitas atrocidades. Prepare-se, a violenta fera do mal está solta e esfomeada.

Antônio Júnior
(Em Granada/Espanha)

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