O gari e o guri
Infância, tempo que pulsa dentro da gente. Volta e meia, imagens inundam a memória e lá estamos nós. De novo.
Pois bem, minha mente viaja e pousa em Porto Alegre, bairro Menino Deus. Menino pobre, em meio a vizinhos burgueses. Porém, a meninice é mesmo um território democrático: todas as classes se misturam. E inesquecíveis "peladas" acontecem.
Assim, o futebol era nossa arena. Partidas disputadíssimas. E no final, quase sempre, brigas generalizadas. Bem se diz, em todo o Brasil, que gaúcho gosta de confronto, de um "entrevero"...
Jogava de goleiro, não conseguira colocação melhor. E, com uma defesa aqui, um "frango" memorável ali, prosseguia atuando. Cá entre nós, para falar a verdade, a maioria dos garotos detestava a posição de goleiro.
Existia, no bairro, um personagem que seguidamente deixava de lado sua vassoura e assistia às partidas. Era Xantu, um operário da Limpeza Urbana, nem um pouco fanático por seu trabalho.
Lembro-me bem, dele. Mulato alto, magro, com a boca desfalcada de vários dentes. Porém, isto não o intimidava de sorrir. E de falar de um modo confuso sobre as coisas e o mundo. Nunca se ficou sabendo se era bêbado ou louco. Ou ambos.
Certa ocasião, após uma difícil defesa, onde revivi os tempos do tricampeão Félix, Xantu não se conteve:
— Eu queria ter uma máquina de escrever pra fotografar este lance.
Gargalhadas gerais. Por muitos dias, Xantu foi motivo de troça. Ele nem se importava. Continuava seu trabalho, sorrindo.
Hoje, em meio ao trânsito caótico da cidade, vi um gari fazendo seu serviço. Lentamente, como Xantu.
Mistérios do inconsciente. Sua figura me surgiu alta e clara, na mente. E sua frase célebre...
Onde andará Xantu?
Será que já se aposentou do serviço e da vida?
Talvez, em outro plano, esteja me sorrindo. Com a generosidade simples de uma criança grande. Não sei. A vida me levou a outro bairro, outros planos de vida.
Desfaço o encanto. Acelero os passos e vou ao encontro de meus compromissos.
Com Xantu no pensamento.
Ricardo Mainieri