CICATRIZES (uma história de futebol)
Sim, 21 de junho de 1970 tornou-se uma das mais importantes datas da História do Brasil. Afinal, naquele dia a Taça Jules Rimet conquistou-a em definitivo a seleção brasileira, na inesquecível peleja contra a Itália, diante dos mais de cem mil fanáticos mexicanos espremidos no Estádio Azteca, quatro a um, lembra? Mas, 1970 também marca a fundação e glória do efêmero Botafogo Futebol Clube, de Cataguases, o “Botafoguinho” do Paraíso, que, raro caso nos anais do desporto bretão, desmantelou, invicto, após vinte partidas disputadas entre agosto e dezembro daquele ano. E, para avivar a memória, que se vai esvanecendo, construímos esse breve relato.
Desassossegado, seu Miguel garrou a levantar a desoras para pitar o cigarro-de-palha. Insone, deambulava pelo quintal, friagem beliscando os pêlos do corpo, cerração acoitando a paisagem, indagando de si para si como havera de ser agora que o misto parecia mesmo ia ser suspenso, só correriam os trilhos os vagões de minério, não mais os de passageiros, ele, que a família sustentava com o frete da carroça estacionada na Praça da Estação, apoucados os carretos, faria como com os filhos, oito, de-menor, e a casa, essa, ainda no acabamento? E nesta agitação vertia a noite, no pretume agachado, a matutar, e se pé-ante-pé o surpreendia a mulher, “ Perdeu o sono, homem? ”, ele, secarrão, retrucava, “Nada, Creusa. Estou tocaiando um gambá que espantou as galinhas, ouviu não?”, ou, “Nada, Creusa. Escutei um risco de pé, achei fosse gente, vim ver...”, ou, “Nada, Creusa. Tive a impressão de chamado, ouviu não?”, e ela, “Meu dormir é pesado, homem, você sabe...”
... porque livraram-se do aluguel... nem mesmo acreditava... Anos aciganados lugar-a-outro, nem a estimação as crianças apegavam. Esculhambação de senhorios humilhando-o na frente da mulher, dos filhos, vizinhos, estranhos. Marginal não era para tanto impropério! Engolia os desaforos, catava os pertences e desarranchavam de manhãzinha, tangendo, furtivo, bancos e meninos-de-colo, panelas e narizes-escorrendo, mesas e cabeças-emperebadas, seu sangue, sua mobília. E assim enviesou quatro-cantos, mão para a boca, envergonhado, endividado, a família espichando, planos anormais bicavam suas idéias, formicida, largar-se no mundo, até, demonstrando que Ele não desampara os seus, o cunhado descobri-los alojados de-favor numa garagem na Vila Teresa, doentes, desmilingüidos, e arrastava-se insolucionada a pendenga, desde o passamento do Justi velho, incendiando inimizades e maledicências e quiproquós, com ameaços de morticínio e advogação de doutor-de-anel-no-dedo, cunha interposta entre a outrora amorosa parentalha, cobiça por terras mal amanhadas no derredor de Rodeiro, pátria de voçoroca e mata-pasto, cupim e caninana, pedra e pó olvidando estarem de-mal, estipular a boa-nova, “Creusa, minha irmã!, minha irmã!” (abraços, lágrimas) “Quanto tempo, meu deus, quanto tempo!”, necessitava da sua concordância,
“... fim dessa coisa-ruim... Ajeitamos um acerto."
“Compro o seu pedaço! Não é coisa de muita valia, mas se é pra enterrar essa história."
“O que precisa é de voltar tudo como antigamente, isso que importa. "
O lote, no Paraíso, compraram-no a prestações, o bairro ainda banguelo, uma lonjura, nem água, nem força, calçamento então!, e escola?! A rua que afluía transversalmente do Beira-Rio trifurcava ao chegar à mina: ali, o terreno. À esquerda, íngreme, serpeava enfezada, trançadas valetas rompendo a poeira e o capim-gordura, casebres de pau-a-pique e viralatas, o Paraíso dos pobres. Ao centro, escalava uma suave elevação entre mangueiras e abacateiros, casas-de-alvenaria, poços artesianos, cachorros, o Paraíso remediado. À direita, ensaibrada, chácaras de muitos pomares, pastores-alemães e amplas varandas, o Paraíso dos ricos. Só, cercou-o, capinou-o, aplainou a base para o alicerce. Servente, as paredes ajudou a erguer. A laje bateram-na um bando de pinguços, domingo de sol entocado, a troco de bucho e cachaça.
A carroça, pagou-a à vista, ponto na Praça da Estação, cavalo e arreio, preço-de-ocasião, chaleirou-o um vivaldo, para meses após entender que o dito, coleado com algum-alguém ‘de-dentro', lhe passara a perna, velhaco!, pois o misto agoniava, não-mais vagões-de-passageiros, que lhe garantiriam, parecia, o futuro, serviço certo de carga-descarga daqui-prali: arroz em casca e limpo, feijão, fubá, açúcar, farinha de trigo, rolo-de-arame-farpado, bacia-de-alumínio, balde, bobina-de-papel, vassoura, corda, fumo, farelo, lampião, lamparina, macarrão, óleo, querosene e, enfurnados em sacos-de-estopa, leitões, frangos, patos, gatos. Mudaram num sábado ranzinza e empossaram-se das paredes sem-reboco, do chão de terra-batida, dos cômodos sem portas, ausentes mobílias. Água para beber e cozinhar e lavar roupa e tomar banho buscavam na mina, sol-nascia-se-punha rastos de pingos estrelados na poeira. Necessidades faziam na ‘casinha', na claridade, e no penico, nas intempéries, no após-o-ângelus. Logo... E planejava vermelhão no piso, paredes azuis-claras, janelas azuis-escuras, poço com bomba, banheiro com bojo, e fogão-a-gás e roupas-novas para a filharada e dentadura para a esposa e um poldro zaino para o lugar do pangaré pedrês e e e as bicicletas operárias encontravam-no escuro ainda na bica, bom-dia-seu-miguel, desacorçoado ferventando na cabeça a ganhação do dia, e aflito largava o ponto, tão-logo desincumbia-se das mercadorias idas-vindas no misto, para percorrer os mais longínquos bairros, Justino, Matadouro, Dico Leite, Ibraim, Santa Clara, Leonardo, a-soldo no transporte de areia e pedra-britada e cimento e pedra-marruada e tijolo e esterco e lenha e grama e paralelepípedo e tudo, “Vai esfolar esse infeliz, ô Miguel ”, alertavam insucessos os conhecidos, até
... cansado... o fôlego curto... bolo na garganta... aperto no peito... um troço esquisito...
“ Pode ser coração, o doutor Romualdo falou ”, explicou à mulher, que, desesperada, largou de bater a roupa na tábua e precipitou-se casa adentro, “Ai, meu deus!, que tragédia!, que desgraça!, por que essa provação, meu deus?, que mal eu fiz?, que mal eu fiz? ”, desmoronou de bruços na cama, pranteando-se, acendendo um rastilho de pavor no marido, quer dizer então que... talvez... aquele negócio... podia ser... severo... e
Morrer ...
o pai pegou a lamparina, saiu, os cachorros ganiam e mijavam amedrontados, cartucheira à mão, um bicho-qualquer rondava o galinheiro, a ventania úmida rolava-arremessava as nuvens, roncavam trovões, coriscavam relâmpagos no céu negro, “ Põe a botina, homem ”, a mulher gritou à janela, vendo a luzinha frágil desaparecer surda atrás da tulha, as crianças, abrigadas sob a mesa da cozinha, cisma de temporal, ouviram o estouro, raio ou tiro, berraram, vacilante a mãe indecidia-se em sofrear os filhos, pingos dedilharam as telhas martelaram batucaram, a chuva abateu em fúria, látegos chacoalham a taipa, dança o teto na zoeira, vozes chapinham, “ Nilda! Nilda! ”, arreganha a porta o vento frio arruaça os cômodos, “ ... a cobra... a surucucu... a cobra... ” Naquela noite, as águas transbordaram do açude, deitaram o arroz, arrastaram um garrote, escarafuncharam a trama de bambu-e-barro de duas choças, recolheram laranjas limões e abacates, arrancaram pés-de-pau, arruinaram a estradinha que deságua em Guidoval. A manhã despertava lambendo-se ao sol, quando os lábios rachados do pai, inchado e vomitando sangue, moveram-se para testemunhar e cerraram-se, abandonando a plasta malcheirosa que restava sobre o catre.
Morrer ...
novo, meu Deus, muito novo! Quantos anos? meses? dias? horas? lhe pertenceriam ainda? Necessitava tanta coisa! Ao menos acompanhar a filharada encorpar, encaminhar-se, pedia muito? Quanta mágoa por não ter tido uma família de-sua!... A mãe, enterrado o marido, enjeitou a prole, perdeu-se no mundo, andeja e falante, bicho asselvajado sem pouso e juízo. Os dez irmãos repartiram-nos pelas redondezas, separados por serventia: os mais velhos, que já podiam manejar o cacumbu, empregados; os mais pequenos, por piedade, incorporados às criações; os do meio, para engorda, agregados. Seis anos, Miguel, embichado e raquítico, amarelo e quebradiço, pulou de fazenda em fazenda, malquisto, até ser pego por uns cultivadores de mudas de laranja em Dona Eusébia, onde, até pela morte desprezado, medrou entre viveiros de plantas e enchentes do Rio Pomba. Nunca soube dos outros, se vicejaram, se converteram-se em pessoas-de-bem, se desandaram. Rude, murcho, deserto, observava a mulher, as crianças, cabeças apoiadas em seu colo, fim de tarde, serena a catar piolhos; ou circunspecta na hora do banho a esfregar a bucha para arrancar a caraca; ou alegre à noite em volta de uma bacia de pipoca a contar casos de quando em Rodeiro; ou brava a passar mertiolate nos machucados; ou terna a fazer maria-chiquinha nas meninas; ou compungida a ensinar músicas da igreja... e ele arredio, xucro, arisco, imaginando gestos de carinho e só se apresentando para o esculacho, a tunda, a surra, como se fantoche lhe movessem as pernas e os braços o diabo, como se lhe espremesse a cabeça a vergonha caso amado fosse.
E acabrunhou-se, ânimo algum o afastava do quarto, o Rex amuado ao pé-da-cama, suspirosa a mulher batendo-cabeça lá-e-cá. Sentidas, as crianças adiaram brigas, correrias, traquinagens, gritaria e lutuosas fungavam quintal e corredor.
Inclinado à janela tardo-vespertina, o cigarro-de-palha penso dos lábios, seu Miguel reparava o ocaso
uma galinha escarva o chão duro, piam álacres os pintinhos
resignado, o pangaré mastiga o pasto seco do terreno vizinho
diligente, a mulher recolhe a roupa do varal
passa um conhecido, ' tarde, seu Miguel
meninos jogam bola na rua
aroma de café
lânguido, um gato ressona sob uma touceira de erva-cidreira
baldes dágua, seguem a vizinha, os filhos, ' tarde, Creusa
acende o cigarro-de-palha
uma das filhas afaga o Rex
uma bicicleta, ' tarde, seu Miguel
a mulher, Está com fome não, homem?, pega o ferro-de-passar-roupa
outras duas filhas brincam de casinha, à porta-da-sala
cabelos molhados, um uniforme caminha à escola
meninos jogam bola na rua
uma bicicleta, ' tarde, seu Miguel
acende o cigarro-de-palha
dois vizinhos a pé, Como vai indo, seu Miguel?
uma família crente, cabelos longas roupas, terno-gravata
resguardadas, as galinhas pipilam
obsessivo, o gato mia na cozinha
língua de fora, o Rex vem da direção da mina
os meninos tomam banho-de-cavalo
lenha queimada
grilos sapos grilos sapos
uma bicicleta-de-carga, compras
acende o cigarro-de-palha
o lusco-fusco
cheiro de arroz refogado
chia um rádio
' noite, seu Miguel
vagalumes
a paisagem turva a escuridão
vagalumes
lança fora o cotoco do cigarro-de-palha, fecha a janela, senta-se à cama, não, não podia continuar assim, entregue, pacífico, tinha que lutar, fazer alguma coisa qualquer. Já acordado ao despertar o relógio, levantou, aspirou a enjoativa fragrância da madrugada e, calcando receoso o silêncio, esquivou-se das sombras espessas, perfilando-se frente ao prédio do INPS para tirar uma ficha.
O médico, champoliando a garatuja da receita, recitou Quinicardine três vezes ao dia, Digoxina um pela manhã.
“ ... arrumar um troço qualquer pra distrair a cabeça... ”
(À frente Jesus, comprida cabeleira, longa túnica branca, homens e mulheres, conhecidos alguns, sobem devagar o morro escarpado. Ao alcançar o topo, suspendem a marcha. Um rapaz, a cara do Zelito, irmão nunca mais visto, cruza perpendicularmente o ajuntamento candeando uma vaca em chamas. O animal segue lento, lastimoso, conformado. Pensa chamá-lo, mas, “Miguel!”, ouve a convocação. Assustado, aproxima-se. Jesus deposita a mão pássara em seu ombro esquerdo e, volvendo para a direção de onde se deslocavam, fala, brando, “Miguel, você andou de lá até aqui”, apontando um minúsculo casebre, da chaminé um fio risca a paisagem. Após, volvendo para onde se deslocavam, “Falta pouco agora”, diz, apontando uma estreita trilha que coleia monte abaixo. Miguel afasta-se, começa a descer sozinho. Alguns passos mais, volta-se, imóvel o grupo permanece. Lá longe, Zelito (seria mesmo o irmão?), conduzindo a vaca em chamas, desaparece atrás de uma enorme pedra.)
A chaleira encheu novamente a caneca de café fervente, Miguel chupou o cigarro-de-palha, “Preciso de tomar um jeito, Creusa”, falou, observando, de soslaio, pelo ângulo da janela, o menino entrar no terreiro, cavalo encabrestado, a carroça cabeçalho braços erguidos aos céus. Este, o terceiro filho-homem, calculando do mais velho para trás, Paco, Paquinho, desengonçado que nem paquinha, gracejavam, abria o bué, resignou-se. Dependesse, corria atrás de bola sol a sol, o atentado! “ Tem que ralhar com ele, homem, não quer saber de estudo, nada”, a mulher comentou, invadindo as idéias do marido. “ Vive enrabichado na Vila Teresa...” “Vila Teresa?!”
- Lá tem campinho, pai...
- Aqui não?
- Não tem time...
Centerfór raçudo, em Dona Eusébia trocava bailes por peladas. De segunda a sexta revirava conversas para saber locais de rachas. Domingo, calção e camisa, defendia-se, chutes pernadas dribles empurrões socos murros cabeçadas mordidas beliscões cotoveladas escanteios soladas faltas xingamentos laterais tostões cusparadas gols e, escalavrado, canelas roxas, dedos-dos-pés tortos, unhas lascadas, costelas doridas, olhos raiados, dentes quebrados, tratava de mudas de laranjas e limões. Casado, abandonou o futebol pelas gravidezes. Enrijeceu, perna-de-pau.
Então ...
Entre carretos, assuntava, fantasista. Cataguases tem Flamengo; Vasco, do Leonardo; América, da Granjaria. E, agora, também haverá Botafogo, do Paraíso !
Apalavrados:
vereador Ivo do Bazar Menezes: quinze camisas-de-malha brancas, gola-careca
doutor Romualdo: duas camisas-de-goleiro pretas
doutor Normando: vinte e quatro pares de meiões brancos
Chuteira, calção e suporte, intimidades, cada um o seu carrega.
Do comércio do Beira-Rio arrecadou doação e negociou tubos de tinta Guarany preta e Acrilex branca. E uma bola-de-couro oficial número cinco e uma caixa-de-isopor.
Fim-de-semana, Creusa sapecou o corpo na caloria de um fogareiro-de-serragem ferventando camisas-de-malha brancas regurgitando água preta, pitadas de sal para firmar a cor, empós quarar, secar, dobrar, “Custa nada proceder esse gosto, coitado...”
Zé Peixe, solícito rapaz vizinho no Paraíso dos pobres, pintou com esmero a numeração nas costas, fez fôrma, desenhou escudo, escreveu em-dentro BOTAFOGO F.C., e decalcou com asseio no coração de cada jaqueta, coisa de artista, “Vai longe, esse”, cheiro de acrílico domando a casa, seu Miguel nem mais alembrando do coração manco.
O elenco arregimentou-o boca-a-boca, gente moradora de ali-por-perto, encostados no banco-de-reservas do Flamengo, do Operário, do Manufatora, do Cataguases, veteranos e juvenis, valorosos e descontentes, até um diz-que sobrinho do Friaça, aquele da final contra o Uruguai, dois-a-um, Maracanã, Copa de 50, seboso e mascarado, treteiro e falastrão, entrou-saiu do escrete ainda no primeiro treino, desaforado!
E partidas vieram e vitórias.
De começo, tímidas, como a estréia, despovoada de torcida, um-a-zero contra o Vila Teresa, no alto do Paraíso, onde, chutada, a bola escorria dezenas de metros, até a amparar uma touceira, uma arvrinha, restos de gravetos secos. Quarto jogo, entretanto, afamado o time, arrastava a molecada a bunda barranco abaixo para retomar a bola; vendedores de laranja, de garapa, de picolé, de algodão-doce, de pipoca, arrodeavam as laterais; namoradeiras grasnavam ais de gulodice; e os olhos todos perplexos assistiram o três-a-um sobre o Vasco, que até campeonato da Liga Esportiva Cataguasense disputava...
Judicioso, seu Miguel segredava para em-antes das pelejas pouco comer no almoço, abstinência do beber e do fumar, Iodex nas coxas, faixa-de-gaze nas canelas e o pelo-sinal quando nas quatro-linhas adentravam. Nas contusões, gelo, Emplastro Sabiá, Beladona. Senhor, instruía, xingava, provocava, alertava, modificava, substituía, vibrava. Tratava embates e coletava apostas – paternalista, dividia o ‘bicho' em barulhentas rodadas de cerveja e cachaça e cigarro. Estratego, em grupo rumavam coesos bicicletas ao terreno adversário, desassombrados e acintosos, valentes e intimidativos, anus-pretos, por destemor.
Reputados, sobreveio o inaugural desafio intermunicipal – nona partida, pelo Zé Peixe, contabilista de fichas-técnicas, que, incompatibilizado por ruindade, mas porém entusiasta, a tudo se alinhava. E, no deslocamento a Astolfo Dutra, para digladiar com o Portuense, teúdo e manteúdo de renome regional, alugaram o caminhãozinho International KB-6 do Zé Pinto, da Vila Teresa, enguiço, suor e poeira, incontestável e aritmético dois-a-um. Encachoeirados, outros certames: Spartano, de Rodeiro (dois-a-zero), Primeiro de Maio, de Miraí (um-a-zero), Cruzeiro, de Guidoval (três-a-um). Afora, os manjados Bairro-Jardim, Brasil, América... Em resumo, apenasmente não passaram-a-fio os gigantes Operário, Flamengo, Manufatora e Cataguases.
A Rua do Comércio faiscavam luzinhas adornando as lojas, despojos desejos expostos em vitrinas decoradas, Natal.
Domingo, vinte, seu Miguel espertara a manhã zanzando sem-lugar no aguardo do cata-níquel fretado pelo doutor Normando, que conduziria o plantel a Recreio para o enfrentamento com o Ideal, interdita a viagem a caminhão, já que transitariam pela Rio-Bahia, meu deus, a Rio-Bahia!, gente ali havia que nem sequer Leopoldina conhecia... Às onze, encostou junto ao meio-fio do bar do Auzílio, a charanga surdo-repinique-tamborim-zabumba-pandeir o-apito choramingando por favor, vai embora,/minha alma que chora,/está vendo meu fim./ Fez do meu coração a sua moradia,/ já é demais o meu penar, e iniciou-se a carregação, sacos de laranjas, lima, baía, campista, cascadas, e água-da-mina e dois garrafões de sangue-de-boi e a bolsa-de-massagem e um barrilzinho de cachaça-curtida e quatro dúzias de foguetes e o saco com uniformes e a caixa-de-isopor com gelo, e pouco-em-pouco assomaram os atletas, comidos e satisfeitos, seu Miguel, à porta, dentes às escâncaras, inspecionando. Sol a-pique, última conferência, “Pode fechar... Vambora, meu povo!”, o motor arranhou, tossiu, resfolegou, zangou-se, calçõezinhos e viralatas escoltaram as rodas até extenuados renunciarem, felizes.
Paco sombreava, xodó, desde a estréia, “Meu amuleto”, seu Miguel exibia-o, orgulhoso. Agora, à janela, especulava a trêmula paisagem que ardia lá fora, bois, cupins, urubus, casebre abandonado, árvores, cachorro, urubus, charrete, sombrinha, chapéu, andarilho, urubus, nuvens, dormitam alguns, sussurram outros, ri aquele, o pai vaga pelo corredor, sonha talvez, Ano que entra...
Sobre arquibancadas vazias, desmorona a tarde quente
carrinho-de-picolé
o bêbado macaqueia passos de um samba improvável
um viralata alardeia-se em covardia
o doido cospe palavras grunhidos parvoíces
um mico acata desconfiado pipocas das mãos de um deslumbrado garoto
o soldado assiste displicente aos passes
uma preguiça flecha em repouso arranha o tempo trepada num oiti
o vento acaricia as folhas das mangueiras que espiam por sobre o muro
dois-a-zero
e esgotam os garrafões na farra do sangue-de-boi e estouram quarenta e oito foguetes e fatigados recordam zenãomente lance-a-lance a partida e esfomeados incitam o motorista, LESMA!, a ir mais depressa, entrecortando a cantoria a fala do seu Miguel, comovido, “Nossa senhora!, porque sinceramente...” Imperceptível, a noite apaga o lá-fora...
O ônibus transpõe o pátio irregular, sem calçamento, de um posto-de-gasolina, “Tem que abastecer”, antecipa-se o chofer aos protestos, estaciona juntas estralando frente ao bar de lâmpadas enfermas e desembarcam todos ao mictório. Embora a bexiga cheia, Paco pensa permanecer, de longe espreitando a bagunça que anima o elenco, mas o pai o incita, “Vamos lá esticar as pernas, falta um bom trecho ainda”, e, voluntarioso, desce, infundindo-se no calor, luzes dos faróis que pirilampam a Rio-Bahia.
Acanhado, para não mijar com os mais velhos invade a escuridão, cricris de grilos, semi-incêndios de vagalumes, bumbo de sapos, zunzuns de pernilongos, dois cavalos estendidos assustam-se levantam-se afastam-se, apático um cachorro fareja o chão. Às cegas, busca um lugar para se aliviar, esbarra em dois escangalhados caminhões, gêmeos em sua desamparada ruína. Intrigado, vazias as boléias, passos descalços movem-se temerosos curiosos, entre as carrocerias de lonas esburacadas pareceu escutar sussurros, murmúrios, pára. Orelhas afiladas, coração açulado. O breu . Ribombam motores que irrompem da Rio-Bahia. Passos descalços movem-se temerosos curiosos, perfila-se à traseira do F-600, da boca da capota exala mau hálito. Receoso, seus dedos miúdos arrojados franqueiam uma pequena fresta do fundo da treva brilham dezenas de faíscas alumiando seu pálido rosto aterrorizado,
“Menino, onde é aqui?”, uma débil voz indaga, ignoto sotaque; paralítico o corpo estaca, mãos esqueléticas rostos encaveirados, “Que povoado é esse, menino?”, e, seca, a língua é medo e é pavor, “É São Paulo já?”, avoluma-se o burburinho, “É?”, e descarnados braços oferecem-se em murchas bocas, “Vai pra São Paulo também?”, geme um neném, “Amonta aqui!”, risos, “Ô, menino!”
e na correria pálido choca-se com o pai, impaciente, mastigando a ponta do cigarro-de-palha, à porta do ônibus, “Estava todo mundo te esperando, raio! Entra logo, vai!”.
Luiz Ruffato
Fonte: http://ardotempo.blogs.sapo.pt/53857.html