Aranha

Não posso reclamar, vejam bem. Fui comer uma salada de alface e encontrei uma visitante indesejada. Uma aranha. Vejam só esse mundo, uma aranhazinha dentro de uma folha de alface, dentro de uma geladeira. Imaginem só, podia ser eu. Isto é, podia ser eu na geladeira; podia ser eu lá dentro, tiritando de frio, sem como me esconder da friaca danada. Não sou gaúcho; desconfio, por outro lado, que nossa colega multípede deve ter algo de pampas em seu sangue. Só sei que a mocinha e stava ali, toda silenciosa, com oito olhos em mim. Vou lá morder a aranha? Vai que ela custa a descer, engancha em meu esôfago e resolve me fazer de hospedaria. De noite, múltiplas aranhinhas sairiam de mim, numa conversa infernal de aranhas, cozendo suas mantas e preparando seus fios para labirintos e eu, aqui, morrendo de frio nesse domingo que nem chove nem sai de Simca. Deus me livre; ao nascer do sol as pequeninas resolveriam voltar todas para o hotel barbudo. E lá iria eu com minhas gratas mocinhas todas enoveladas em mim, sabe-se lá em que curva, ou que cavidade, ou até em que paragem. Nada disso! Eu num banco dedilhando minhas senhas todas e mil olhos aracnídeos espionando meus polpudo salário de marajá USPiano. Eu hein! Ou pior, sabendo de meus luxos de criança grande, este eterno Peter Pan que me acompanha em voos rasantes. Aranhas são feitas para viver em teias e no mais a mais, em que teia elas me meteriam se me habitassem às escondidas? De forma que, delicadamente, tirei a folha de alface, a aranhazinha pernilonga me olhou com aquele ar de já saber que o fim se aproxima e...Pus a coitada perto de um coqueirinho aqui da sacada. Está lá, me fitando embasbacada: Como? Não morri? Ele não me engoliu? Aracne, o Deus das aranhas, deu-me nova chance??? Teve jeito não. Lá está ela tecendo mantilhas, rendas e fricotes diáfanos, bem à luz do sol setembrino; dias há, agora, que um colar de jóias se vê bem à frente das nuvens.

Flavio Gimenez

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