O povo do sol cresceu à beira de abismos, num país distante.
Estabeleceu sua densidade e seus ideários nas pedras que lhe sepultam.
Nas cavidades do dia experimentou a primeira viagem do sol e inaugurou
sua estética nas grafias do fogo, onde fecundou-se, obstinado, num
transe simbólico. E à primeira vez, ergueu-se em direção
ao céu dispersando-se na fúria do universo adormecido, contra
a escuridão difusa de seu deserto interior. O fogo caligrafou um
campo vermelho em dolorida coesão sobre o coração
do povo. Quase abjeto e incontido, o povo do sol desejou um solo de tremores,
uma morte solitária, gradual, invisível. Veio como uma tulipa
negra que nasce entre os chuviscos da noite e se vai com o funeral da tarde.
Montado em alpacas dissímeis, o povo do sol aportou no silêncio
das ruínas. Em frêmito, infligiu a criação em
ataúdes multicores -o funeral das coisas- e mirou um outro tempo.
Assim, desnudos e mortos, revieram os Incas e seus vazios, a população
dos vulcões, as mulheres barrentas de água e sangue,
a África inteira, a sacralidade das florestas, em suas vigas adornadas
pela memória primogênita dos seringais. Vontades inseridas
nos calores da arte, nas recordações, nas miniaturas, nas
elucubrações azul-marinho que invadem o corpo do artista.
O centro gravitacional da poesia aboliu o canto em nome de um último
vislumbre do jardim cósmico, entalhado nas estações
de um rio secreto: caudais que a própria poesia gera em suas fontes.
O povo do sol vive aí as enfermidades da palavra, seus ocultamentos,
sua harmonia profunda. Em seu solo a luz verdadeira do cérebro do
artista lembra coisas em silêncio. E escreve. O poeta sabe em seus
mapas -cidades, rios, ruas, fronteiras, ontem e hoje- o caminho de seu
jardim. E por fim, o cultiva, sem saber o que significa.
Paisagens
O índio sentou-se sobre a pedra. Solitário. Esperou cair outubro e o couro dos tambores, a flor e o trigo, saciar o peixe encerrado no ventre da manhã. Imaginou suas lembranças desde a paz que o rio esqueceu, da argila morna, do cântaro aceso, das raízes, lanças e selvas que o guanaco, a lhama e o iguano tocaram. E mudo, repousou sendo abismo. Pedras sendo. Enquanto a estrada aceitou outros viajantes...
SEGUNDA VIAGEM DO SOL
Despenhada na voz do povo a sombra salobre dura. O cântaro pisado,
a flor molhada da montanha, o carvão, o ouro e o nácar duram
na palavra. Na palavra esperam. Na palavra crescem e viajam. E cresce a
palavra. Brota da terra, na verdura insolente dos juncos, na maciez dos
pântanos, nas grotas que guardam as sentenças do vento -como
as flautas esquecidas dos Andes. Amanhece à beira das brasas de
uma fogueira extinta, indecifrável. Incomoda a palavra. A palavra
procura o ventre da serpente; -a lama vermelha habitada de estranhezas.
De muito longe, ainda lembra desertos e a rigidez dos corais. Chorando,
inunda os abismos de azul ao se importar com pássaros. Ao colo,
um pote de ouro conduz -a segunda viagem do sol. E uma palavra apenas,
diz a palavra. Azul, avizinha-se de um colibri.
TERCEIRA VIAGEM DO SOL
A litografia da palavra impressa nas sinuosidades que o vento transporta. O sol viaja. E publica uma crença comum e o apreço à serenidade. A longitude da alma no vestuário dos ventos carregada de resignação: a palavra proibida instala-se, rebenta como arte e desejo de arte. A essência guerreira da palavra na memória coletiva dos discursos espreita seu tom inverídico, sua base profana, seu limite imperfeito, traduzidos na aspiração concreta do caos, onde se busca a si, cria-se palavra, ritmo, suor de uma libido, ciscos de um inferno. Na terceira viagem do sol, o povo anuncia-se em seu esgotamento. Aí descobre-se as alegorias e as metáforas emergentes do vazio de novo retorcido no pragmatismo das formas. A alquimia do povo é sua vontade de incisão, sua placenta de fogo onde gera o inconcebível, o atordoado, sua condição, o espelho do signo, sua corporeidade rarefeita, sua transparência em tempo de obscurantismo. Na alquimia do sol faz-se da palavra carne, impregnada, grafada, pousada na luz rarefeita de sua própria materialidade, em ícones abertos em telas muito finas -as paredes de sua própria utopia. Na rede das transgressões armadas, nos manuais de primeiros socorros da gramática da vida, nas censuras acobertadas, nas monotipias da ditadura -pais da pátria que não se fez-, na disputa e na abstração, o povo estabelece sua ambigüidade, sua infâmia, sua rebeldia. E assim, o povo fala a palavra. Fala fugindo, na diáspora da poesia ou no espaço pachola dos letreiros da cidade. A conexão da vida é a serigrafia da palavra, sua biblioteca ambulante, seu degredo, sua escolha. Revela a busca do homem livre, a essência cinética da esperança, linhas ponteadas de sua inebriante alegria. O discurso do povo é a textura das sutilezas do cotidiano, um mundo decadente, inóspito, exposto à violência e à barbárie dos tratos que a natureza expressa na simbologia de suas voluptuosidades. Mas aí mesmo o povo se descobre, suporta os moldes de sua humanidade e recria sua obra: a arte vaza pelos entalhes da palavra, suas rachaduras, os sulcos da arte poética no grotesco estímulo da memória do povo. E o sol viaja nos lajedos da caatinga, na lama vermelha dos rios, no mofo das paredes, no esperma rejeitado dos prostíbulos, no óleo que azeita a trama das maquinarias. A árvore da poesia permanece fiel: rege-se pela consciência monetária, pelo espaço da coesão, pela ordem precária, pelo auto-serviço da palavra. E a arte semântica da poesia não se entende. A utopia não se entende. A esperança e a força não se entende. A essência inalcançável da poesia descansa nos lábios da interrogação incisiva. Respostas estão no museu. Na poesia não há respostas. Na poesia se tem vida. Onde há vida, não há respostas.