Todo o chão a minha volta, num raio de dez metros, estava coberto com cacos de cerâmica. Acima, um céu negro, sucumbia qualquer protegido ao medo, tamanha era a sua magnitude. O ar frio que batia na pele provocava arrepios dos mais profundos... Bem ao longe se podia escutar lobos uivando, como se estivessem celebrando o ritual que aconteceria logo mais. Eu, nu, amarrado junto àqueles cacos, pagava todos os pecados do mundo sentado numa arena sem igual...
O vento começou a apertar, desarrumou meus fios de cabelo, ganhou forças, cresceu e passou a assobiar. Nesse instante, os incontáveis cacos, todos com pontas afiadas (com uma, duas, às vezes, até três) iniciaram a chacoalhar...
Era noite de Sexta-feira Santa, uma noite maior! Toda magia oculta arrancava de dentro do meu peito um desespero, o que não era um bom sinal. Eu orava sem parar, tremia, chorava como um cão a soluçar... Foi tudo em vão, ninguém aparecia, muito menos eu conseguia me libertar...
Grãos de areia invadiram os meus olhos e fiquei convencido que estava fadado a nunca mais enxergar. Meu corpo pendia para o lado oposto daquele vento, quando fui afetado em toda pele por coisas que me espetaram, rasparam, cortaram, enfiaram e que me bateram durante muito tempo. Eu gritava de dor quando deixei de rezar... Eram os cacos, nocivos cacos queimados, que já arderam no fogo, o mesmo fogo que a mão do homem criou. Vingavam em mim toda a ira da Mãe Terra, que um dia do barro se transformou.
Meu sangue escorria da testa ao chão, formando um rio de angústia, amargura e aflição. Sequer com pena ou piedade da coisa criada, aquele vento, malvado vento, obedecia as forças da natureza anunciando uma morte derradeira. E neste exato momento, lançou o meu corpo, quase que sem vida, para aqueles cacos, revoltados cacos, que devoravam a minha carne e quiseram me matar.
No entanto, alguns dos mesmos cacos, bateram tanto nas cordas que me
amarravam, acabando por as cortar. Era a minha última chance de
renovação. E na qualidade de criador, responsável
por todas as criaturas, transformei as cordas caídas, dei forma
a gigantes cobras, benditas cobras, que como leões afrontaram todos
os cacos, malditos cacos que quebramos, amassamos e grudamos, e que lhes
voltamos à vida no final!