ARTISTA DO ABISMO

    o mágico acaricia um objeto até torná-lo precioso e depois nos engana com um passe de desvelamento que jamais apreendemos ou recordamos. ele não esconde nada; apenas se apropria do vestígio e trabalha com a realidade transfigurada pelo gesto. imagino ser de outra margem do mundo o baú luminoso dos mágicos. o fundo falso das cartolas estaria atravancado de coisas transformadas: relógios, pombos, moedas e lenços. para que restituir estas coisas de novo ao presente, quando já estávamos prestes a sonhá-las?

    a mão do mágico não é só o sumidouro do verossímil. ele não só mente com as mãos. por trás dos naipes que oculta nas mangas há oficinas, arco-íris em leques recolhidos. seus dedos trabalham fracionariamente o susto. o mágico transpira dessa luta milimétrica com o artifício. sobre esses passadiços estreitos e abissais entre uma mão e outra, ele nos ensina que a certeza toma tristes atalhos, e não se revelam as coisas no momento de elas serem, mas no instante em que passam.

    após o primeiro número, a primeira obviedade traída, o artista já poderia guardar sua mala de desaparição. mesmo que prossiga operando súbitas alquimias sob nossos olhos — vinho transformado em peixe, pano em pérola, nem isto nos surpreenderá mais. ou quem sabe só um gesto ainda nos despertasse, como fez aquele mágico pobre e faminto, sem ter sequer o que fazer sumir, numa feira em várzea alegre: tornar o invisível mais invisível.

Cândido Rolim


 

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