O Menino

            (para Maiam)

O menino do coração de ouro apareceu. Emudeci, com o dedo em riste, e perdi a contagem de estrelas, exatamente na terceira constelação. O vento veio junto, soprando música nas varetas de bambu. A roseira estremeceu e o limoeiro do meu pai deixou cair duas folhas, ainda verdes. Meu coração deu voltas no estômago e a boca prendeu a surpresa com gosto de hóstia mordida.

Era a vontade e a impossibilidade. O pecado e o susto. As visíveis diferenças e as semelhanças gritantes. Conflito e paz. Luz e sombra, sombra e luz. Sim e não. Não. Sim.

O novo mantra , que intuí no século passado, invadiu meus sentidos como um hino, um balançar de folhas de tamareiras bíblicas, lamentos de Muro, sumo dos figos de Jerusalém escorrendo pelos cantos da alma. Não entendi um som. Não quis entender (preferi sentir).

Desci correndo as escadas até meu quarto, baixando os olhos na tentativa de passar despercebida pela página amarelada do Alcorão entre os verdes, vermelhos, marrons, maçãs, pêras e papel rendado na colagem em acrílico da tela na parede da sala. Tranquei a porta com duas voltas da chave, acendi a luz do abajur que ilumina minhas noites e a imagem de Miguel Arcanjo que as protege. Descalcei as sandálias e me joguei na cama, escondendo os olhos com as mãos para não ouvir mais nada.

Márcia Leite


 

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