A idade da alma não é a mesma do corpo. Tenho a impressão que o meu interior envelhece mais rapidamente, os arranhões demoram a cicatrizar, os golpes se chocam com a igual intensidade de uma pororoca em plena ebulição. Não há simetria entre o que vai dentro e o que aparenta por fora. Sou uma exímia maestrina na arte de reger as exterioridades. Admito que me excedo em competência. Visto o traje do dia, escovo os cabelos, uso a maquiagem adequada. Eis-me pronta para o início do espetáculo. Considero-me imbatível na acomodação dos artifícios. Não tenho do que me queixar. As máscaras se adaptam a uma realidade que apenas camufla as aparências. Não me servem tais adereços. O falso palco exibe um cortejo delirante, alucinógeno, efêmero, uma sofisticada e provocante encenação. Estou cansada de fingir.
Tudo poderia acontecer de modo diferente, se eu acompanhasse o ritmo da minha alma. Por que esconder o que deveria representar o espelho do meu rosto? Tenho a idade de dentro e não a de fora. Entre uma e outra, recuso-me a optar pela média. Afasto as estatísticas. Que os números falem de exatos e indiscutíveis percentuais, não de incertos ou duradouros sentimentos. Mensurar o imensurável corresponde a um ato de insensatez. Prefiro a clarividência dos que se permitem enxergar no escuro. Aí, sim, reside a imensidade de cada um de nós.
O universo dispensou o afeto. Há um vácuo de amor. Os receios recrudescem numa multidão que se agiganta, temente de si mesma. No fundo, tão pouco somos. Os que fogem da massa sem forma ganham em discernimento. Os que se apequenam em caminhos populosos perdem o controle de sua vontade. Tenho consciência das minhas fraquezas e convivo com inúmeras batalhas perdidas. Não permitirei que o medo me imobilize. Respeitarei os desejos. Vou em frente, a olhar insistentemente para trás. "Tal qual me vês,/ há séculos em mim./ Começo mais além: onde tudo isso acaba, e é solidão./ Onde se abraçam terra e céu, caladamente."
Minhas mãos pousam sobre a mesa, exauridas do intangível. Os papéis se espalham, velhos, novos, alguns simples folhas em branco, outros esborrando palavras sem significado. Fecho os olhos para pensar. Pensando, mudo de opinião. O vento desfolha o calendário numa erosão impiedosa. Que sei eu dos meus ancestrais? Quando nasci para a vida, não para o mundo? As datas se embaraçam no tear que há muito venho fiando: linhas sedosas, opacas, finas, grossas. O novelo se enrola, ganha volume, emaranha-se. Há tantos nós que sequer deslindo a ponta de origem. Como hei de desfazer as laçadas que envolvem minha alma?
O coração bate forte e cobra a sua autonomia. Há tanta gente me espiando. Ninguém sabe quem eu sou. Faço questão de enganar a todos. Pior: de enganar a mim mesma. Não me conformo com esse ilusionismo. Dói-me atender ao corpo e não ao espírito. É hora de inverter os domínios. Conheço-me o suficiente para exigir de minha sensibilidade uma soberania sobre a razão. Por mais que se explicitem os benefícios da racionalidade, adoto-os por mero convencionalismo. Vence o sentimento. Sempre foi assim. E sempre será.
Desvio os olhos da tela imaginária. Há, entretanto, um espelho que me atormenta. "Fui mirar-me num espelho/ e era meia-noite em ponto./ Caiu-se o cristal das mãos/ como as lembranças no sono./ Partiu-se meu rosto em chispas/ como as estrelas num poço./ Partiu-se meu rosto em cismas,/ era meia-noite em ponto."
Meia-noite em ponto. Sou pura abstração de um tempo que se entranha dentro de mim. Só há uma idade, a da alma.
Fátima Quintas