O homem e a árvore

Todas as manhãs, ao sair de casa, o homem fazia uma reverência discreta à árvore em frente, do outro lado da rua. E esse cumprimento silencioso não lhe parecia estranho. Que, segundo contou a amigos, eles - homem e árvore — eram muitos parecidos. E quem os conhecesse bem, logo perceberia que eram mesmo.

O homem conheceu o mundo, estudou na Sorbonne, acabou advogado importante e voz ativa na vida pública nacional. Mas era sobretudo nas relações pessoais que se revelava especial. O ato de existir, nele, como que transbordava. Vivia a vida em permanente epifania. O que, para os outros, poderia parecer exagero, nele era apenas o resultado da celebração da existência. Estava sempre rompendo convenções. Só uns poucos não o compreendiam. Mas a maioria saboreava sua generosidade, sabia que estar a seu lado era um privilégio, tinha em sua convivência um aprendizado permanente.

A árvore era um Flamboyant, como tantos outros. Não sabia nada do mundo. Continuou sempre plantada onde nasceu, cumprindo sua missão de vegetal. Mas não se parecia com os outros. Por ser bem maior que eles, enorme. E por ter nascido em uma calçada, na Avenida Rui Barbosa, atropelando o tráfego. Obrigando os pedestres a desviar, andando alguns metros em meio a carros que passavam sempre apressados. Homem e árvore eram semelhantes porque eram diferentes.

Um dia adoeceram. Ao mesmo tempo. Como se houvesse algum tipo de cumplicidade entre eles. E sofreram juntos. O homem com pesadas sessões de quimioterapia, a árvore com um fungo para o qual não havia remédio. E assim seguiram, por meses e anos, solidários, sofrendo, fenecendo, pouco a pouco, sem perdão. Até que, voltando de viagem, o homem encontrou a árvore cortada, um ou dois palmos acima do chão. E nesse dia, mais ainda que antes, se considerou parecido com ela. Eram dois amputados, segundo dizia; como se aquela árvore cortada fosse um prenúncio de seu destino.

Só que o homem resistiu ao tratamento, ganhando sobrevida. Enquanto a árvore também se recusava a morrer. E acabou rebrotando em um pendão firme, de quase um metro, subindo em direção ao azul do céu. Alegria indescritível. Batizamos esse renascer com o nome de "Triunfo da Vida". Só não sei é se o homem compreendeu que a frase, no fundo, se destinava menos à árvore, e sobretudo a ele.

Mas o rebrotar do homem e da árvore durou pouco tempo. A história cumpriu seu curso. Estava escrito. Voltando a sua casa, busquei com os olhos a árvore em frente. Só que, então, havia apenas o cimento da calçada. Com homem e árvore sobrevivendo, agora, só nas retinas e nas memórias dos que um dia os viram.

É pena. Todos sabemos que nossas vidas são como rios que correm para o mar, para a imensidão, para o fim. Que o destino é inevitável. Mas nunca é fácil aceitar a perda de amigos. Meu pai dizia que o homem é barro trágico, rareado de estrelas. Se assim for guardarei, daquela árvore, um sentimento de insurreição sobre o barro trágico, de redenção. E guardarei do homem, eternamente, a imagem de uma estrela.

P.S.: Para Sileno Ribeiro. Que um dia habitou aquela casa, em frente ao Flamboyant.

José Paulo Cavalcanti Filho

Fonte: Publicado no Jornal do Commércio, Recife,15/06/2001
Enviado por: Márcia Maia.

Nota de Márcia Maia: O autor é advogado.  Zé Paulo e Syleno são amigos desde que eu era apenas uma menininha. Syleno morreu de um câncer linfático raro, no dia 12.

 

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