A Letra

Vasculho o que não devo. Surpreendo-me com a vocação de ansiar pelo impossível. O que acontece dentro do meu interior? Dizia Guimarães Rosa: “Mente pouco, quem a verdade toda diz”. Já falei tanto que calar é o melhor dos benefícios. Mas acabo cedendo ou me sujeitando à emoção da palavra. Para quê? Para nada. A folha em branco insinua a enorme loucura de expor-me. Melhor seria preenchê-la com as cores mansas de uma pálida aquarela. A pintura não precisa de palavras. Carece apenas de tons e semitons. A sonoridade dói no ouvido, machuca, fere o silêncio. Sussurro alguns ecos que se dissipam no ar. Assim, evito escutar os meus próprios ruídos. Basta-me o esforço de acatar o mistério da escritura. Começarei por onde? Pelo caderno de caligrafia que guardei na gaveta da cômoda, escondido a sete chaves. Longe dos olhos inquisidores daqueles que me vigiam. Descalça, pisando em ovos, esgueiro-me pelo quarto como alguém que planeja com cautela as etapas de um crime inafiançável. Puxo a gaveta, o ranger da madeira me assusta, não quero cúmplices no gesto de ousadia. O caderno lá está, envolto em teias de aranha que se acumularam na medida exata do imobilismo que o manteve intocado.

A letra. A sílaba. A construção da palavra. Quantas vezes repeti os mesmos fonemas em espaços pequeninos que mal cabiam nas linhas previamente fixadas? Primeiro, as vogais. Depois, as consoantes. O desenho letral, o aperfeiçoamento barroco, a tendência à uniformização dos símbolos contribuíram para abafar identidades porventura reprimidas. Perdi-me entre letras que fugiam dos significados para imprimir apenas a simplicidade do sinal. A escrita e a fala se cruzaram na intermediação de um mundo que não sou capaz de absorvê-lo. Quem entenderá a vida? Haverá caminho seguro? Todos me levam a dúvidas e encruzilhadas. Estou no centro dos pontos cardeais. Sem rumo. Sem leme. Sem timoneiro.

Concluo o abecedário no espaço de minutos. Levei tantos dias para decorá-lo! Hoje tudo parece fácil e soberbamente inútil. Que farei com a letra? Que farei com a palavra? Que farei com a minha alma? Sobram desejos. Recolho-os para evitar a vergonha de senti-los.

Aqui está a minha herança. De um lado, o amor. Do outro, o esquecimento. Não me apetecem letras nem palavras. Inclino-me ao deslembrar para retornar ao ponto de origem. Não sei o que sei. O pouco que sei é suficiente para viver. Navego pela memória sem margens. Os espaços estão ocupados pelo vazio da palavra. “O pensamento é triste; e eu quero sempre mais./ Deixo que a terra me sustente:/guardo o resto para mais tarde”.

A lição termina. Sigo cadenciadamente os dogmas de um aprendizado que não me leva a destino algum. Invejo os analfabetos que ignoram a letra. Ela não me serve para nada. Componho frases ocas. Omito relevâncias. Derrapo na insipidez das insignificâncias. A dúvida me escolta, qual sentinela que não me esquece. Tudo vai e vem. Sou como toda gente. Ora falo. Ora calo.

Multiplico perplexidades diante de promessas desfeitas. Nem uma carta me chega. Não há letras nem palavras. Do alto da montanha, no cimo de uma terra de esperanças, grito o mais alto que posso: “O meu amor não tem/ importância nenhuma/ Não tem o peso nem/ de uma rosa de espuma!/ Desfolha-se por quem?/ Para quem se perfuma?”

O papel permanece virgem. O excesso de branco me cega. Que fiz eu de letra, da palavra, do pensamento? “É um nada diante do infinito, um tudo diante do nada, um meio entre nada e tudo”.

Fátima Quintas
 

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