O encanto dele era, no princípio, indefinido. Enquanto ela ali assistia, admirada, o encanto dele vinha se materializando aos poucos, chegando de algum misterioso etéreo. Ela falava que falava de si, no entanto, ele nem pedia, bastava-lhe ela.
Pega de surpresa com tanta suavidade, acostumada a derrubar cavaleiro, ela foi domada no ato. Sentada como uma dama perante o homem, ela virou cambota. Uma energia cobriu-a como uma lufada de vento quente e desenroupou-a de sua habitual racionalidade, de sua arrogante auto-suficiência, deixou-a ao relento de um olhar que se fizera sereno depois de, com certeza, muita luta consigo. Diante dela, um homem simples. Modesto até, dele podia-se dizer que era um homem que se dava como quem estivesse recebendo, homem sem vocação de credor. Diante dela, um homem transparente, nele resvalava fórmulas, táticas, estratégias, jogos, camuflagens, planejos. Diante dela, um homem tão desarmado que a desarmava. Nessa forma impalpável, fluida, o encantamento foi inevitável.
Depois do encantamento, quase tudo podia acontecer para ela. Tornou-se noiva em véspera de casamento.
Pulsando o homem, vivia na dimensão do ritual: alimentava-se de mel tirado ainda fermento da boca da abelha e de leite tirado ainda quente do úbere da vaca, fazia-se movimento no ar e música nas vibrações das estrelas.
Quando não estavam juntos, eram seres secos da espera de um pelo outro, mas refrescados pelo banho pré-nupcial perfumado de cipreste e jasmim. Quando se encontravam, conversavam abertamente, a olhos vistos, felizes pelos preparativos das núpcias. O principal era que um tocava o mundo do outro.
Até que, numa madrugada, nesse momento forte e revelador sob o Sol que surge, ela soube. Insone, cara a cara com seus limites, ela soube: faria sofrer aquele homem.
Escolheu para ambos os menor sofrimento: o do cometa fulgurante que passou, deixando seu rasto de saudades, sem sequer ter sido tocado.
Foi por isso que, na manhã seguinte, ela sentou-se numa mesa distante e nem olhou para o homem. Foi por isso que, quando ele acomodou-se rente a ela no banco da praça, ela, sem a concessão do sorriso, pediu que ele se afastasse.
Foi por isso que ficou longo tempo sem ver o homem e que, quando o viu, chegou de viés perto dele, chegando e já indo.
Um dia, sei não quanto tempo depois, ela foi morar numa casa sólida e clara. Mais aprendida de se mover ao ritmo do natural, pôs castanhas maduras para cozinhar a fogo lento, e ficou longo tempo olhando o panorama da varanda.
O calor acumulado durante o dia subiu do chão e, ao se encontrar com o ar fresco do início da noite, mudou a direção do vento, fazendo soar o sino de sete notas musicais dependurado na cumeeira. Nesse momento, naturalmente, ela compreendeu: faltava ali o homem. Foi procurá-lo. Ele falecera.
Ela recebeu o conforto do aprendizado, recolhendo nas mãos as doces
PROMESSAS.as pitangas que não comi porque
a tempestade levou as flores da árvore
o gelo que derreteu em minhas mãos
antes que eu pusesse na boca
os pêlos no rosto viril que não me deixaram ver
que o rosto é belo
as ondas do mar que se quebraram
antes de chegarem na praia
a visita esperada que não apareceu
e o café esfriou no bule
o brinquedo que me ofereceram
e não me entregaram
o cheiro de terra molhada
pela chuva que só choveu distante
a roseira carregada de rosas cor-de-rosa
no quintal do vizinho
o pêssego maior e mais maduro
no galho que eu não alcancei
a pescaria que houve
e nenhum peixe foi pescado
o perfume de jasmim vindo
do outro lado do muro
a boca preparada para o beijo
que não foi dado
o domingo que estou esperando
depois do árduo sábado
o amigo que chegou na cidade
e não veio me abraçar
os poemas que passaram por mim
e não consegui escrever
o filho gerado que não nasceu
e o leite empedrou nos seios
o homem amado que viver comigo
ainda não veio.
São promessas vivas que me mantêm de pé
esperando o ciclo se completar
enquanto amadureço
até poder receber
o que o ciclo há de me dar,
enquanto eu sinto
a força do ciclo
de dor e de entendimento,
sendo feliz com o que tenho
a cada momento.Marisa Machado