Chovia e, diante do espelho, não sabia mais quem era. Do outro lado, os envelopes abertos das cartas antigas, já, tão insistentemente lidas. Em um só golpe, destruiu todas. Tinha se tornado um ser de contornos tristes e obscuros. Um dia, fora batizada como Maria. Agora, era apenas alguém que, nunca mais, seria a destinatária daquelas palavras de amor.
Tudo começou com uma dessas brigas infantis que, normalmente, parecem não dar em coisa alguma. Em breve, ele telefonaria dizendo que estava errado, que ela era linda e que seu amor continuava o mesmo. Dez horas.Cada dia parecia mais monótono. Os ponteiros do relógio insistiam em pirraçá-la. E era por isso que, seus sentimentos rudes lhe tomavam como se fossem filtros de seus prazeres e doçuras.
Ao meio dia, perdeu seu sexo. Sou mulher, sou homem. Seria tão absurda assim a idéia de querer amar alguém? Naquele momento, não importavam sujeitos ou pronomes. Ela desejava apenas o verbo. Desejar. Eu te desejo mulher de verde que passa na rua. Eu te desejo homem de terno encostado na pilastra do prédio de mármore. Nos desejamos, num dia de sol escaldante. Eles me desejam. Sua vida virava conjugações na mesma proporção em que cresciam suas carências mais profundas.
Sim, ali existiam cds quebrados e corações partidos. Não tinha lhe restado nem a possibilidade de ouvir sua música de cada dia. Era como se tentasse neutralizar seu próprio passado destruindo marcas dele. As cartas foram a primeira medida de muitas outras que tinham de serem feitas.
Eram duas horas, e reza a lenda que é nesse momento que os anjos dizem amém. Tinha envelhecido anos devido a aquele amor. Aquele lhe fazia sonhar e ser uma pessoa melhor. Aquele que acreditou, um dia, na existência. Já não sabia se estava certa ou errada.Amém para suas próprias loucuras.
Enquanto era Maria, pensava que os amores entenderiam tudo, ultrapassariam limites e a salvariam.
E aí, o tempo parou.
Estava ela certa das loucuras que cometia? Se existisse, qual seria a verdade de seus próprios pensamentos?
O dia já era estrelado e o telefone foi atendido.”Você é linda , Me desculpe, Eu estou errado”. Sua vida continuou passando. Sou Maria. O telefone, para sempre, continuou tocando.
Renata Belmonte e Marcelle da Rocha