AUTO-RETRATO

Meus pés não se contêm em sapatos ou sandálias.
Querem correr soltos por aí. Tentam  alcançar o que meus olhos vêem
e muitas vezes tropeçam em pessoas e coisas que  se espalham pelo chão.
As  pernas, musculosas um dia, ainda lembram de passos de dança.
No  meio das pernas, o sexo. Esta fome insaciável de homem sempre me cria problemas.  É o cio em pessoa.
A  barriga se revolta em ondas de gordura que guardam o ninho de minhas filhas.
Bem no centro dela, o umbigo redondo, uma caverna pequena e silenciosa. O olho do corpo. Vê o outro e guarda segredos.
Os  peitos são mutantes. Enchem-se de leite e esvaziam-se.
Alimentam pessoas, são  acariciados e voltam, murchos para dentro do  sutiã.
Os  braços são muito longos. Tem uma mania interessante de abraçar coisas e pessoas.
Na ponta dos braços, as mãos irrequietas mexem em tudo, pegam copos, cigarros, riscam fósforos e colocam papéis com medo de pegarem fogo. E se as mãos deixarem  o fósforo aceso cair?
Meus  olhos não param de procurar coisas. Isto às vezes me irrita muito.
Enquanto olho  para um lado, eles, teimosamente, procuram o outro e por isso torno-me uma pessoa vesga, zarolha, uma face engraçada. Ninguém entende esta vontade própria  dos meus olhos.
Minha  língua está sempre pronta para articular palavras agressivas ou de carinho, pronta para lamber outro corpo, entrar em orelhas,  arrepiar.
Meus  lábios se abrem para beijos proibidos e se fecham, guardando para sempre o  segredo de quem eu sou.

Paula Carvalho

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