Vita se foi sem me dar a receita do impermeabilizante da alma. Esqueceu de me avisar que, como as paredes, a alma também é vulnerável às infiltrações. "Alma descuidada é como casa velha: cria goteiras e mofo!", afirmava vaidosa do seu sistema impermeabilizante. Descobrira-o ainda na infância, enquanto brincava com o barro do jardim num dia em que os adultos velavam um defunto. Chorou por osmose, mas por não saber as leis da química, preferiu acreditar que pegara um vírus. "Tristeza é que nem gripe e sarampo: pega se você chega muito perto." , dizia ao final de qualquer sentença. Freud, se a escutasse, talvez vislumbrasse uma provável histeria, mas o que os ouvidos não escutam, a mente não codifica. E como não a escutou, a histeria escorreu pelo ralo e Vita seguiu colocando o encanamento em ordem. Dava gosto tal ordem! A fechadura do coração nunca travava, os canos da paixão não entupiam, as telhas da segurança suportavam qualquer tempestade, as torneiras da vaidade não gastavam a carrapeta, as descargas dos amargores nunca perdiam a pressão. A ordem era tanta que da noite pro dia Vita não precisou mais dos artifícios das expressões. Deixou de rir e chorar. Virou estátua. Mas não era um bloco de pedra sem alma. Tinha tanta alma que atingiu o em si. Mas isso é coisa da filosofia e Vita não entendia a fala dos filósofos. Freud se a visse talvez vislumbrasse uma provável catatonia, mas desta vez provavelmente erraria, afinal ele não entendia nada de barro e jardins.
Marcia Frazão