Breves Ensaios Recortados Para Pulso

UM

Remendo a arte descosturada pela farpa de meu calendário atual. Estou por um fio, suspensa no descontentamento maciço, dobrado a ferro sobre a coluna das fés, essas que costumo armazenar para os dias e noites vindouros. É assim que alinhavo o estômago desta invernada por onde me esqueço de nascer. É assim que domestico a contragosto a úlcera da espera. Tomo cataflans de seis em seis horas mas às vezes também esqueço. O tempo não regenera a covardia de certas escolhas. Cancelo compromissos que a vida intenta, efetuando bolhas na sola dos sonhos. Sovo de fuga as amplitudes deixadas de lado, para dedicar-me à ignorância dos que resolveram me acariciar de inutilidades. Não faço dívidas para contradizer a deus. Sonego afetos. Atraso-me aos amigos feito alguém que precisa chegar, mas enfrenta engarrafamentos incuráveis: o t rabalho é um trânsito infernal. Congestionada a alma, os sinais estão parcialmente fechados, intermitentes feito um pulso recortado em três. Tempos.

DOIS

Dentro de uns ontens, vertigens de anjos sobre a pele do asfalto. Nuvens de cobalto arrastavam seis olhos contra o tempo. Era deus. Predestinando-nos ao invisível, provando-nos em cegueira, furtando pedaços do percurso. Era deus abrindo uma fresta do infinito, permitindo que espiássemos o corpo do nada em instantes fugidios. E a paisagem varava as retinas alinhando desvios em dimensões idênticas.As almas já sem placas, sinalizavam energias longínquas deste mundo, desprotegidas de matéria: livres dos cinco sentidos. Éramos quinta-feira e parecíamos a eternidade. Rindo.

TRÊS

Ai de mim que aspiro. Ai de mim que espero a coagulação do azul sobre o horizonte incinerado para a purificação das expectativas. Porque concluso, o chão exerce sobre os que crêem, um efeito de ímã despertador. Porque de metal, as raízes do sol se movem lentamente na membrana dos glóbulos, como se fosse hora de amanhecer. Se não lembro do relógio é porque não faz parte do meu pulso. Se não lembro do relógio é para permanecer mais tempo no outro lado de mim: aquele menos ponteiro. Ah sim, sim. Já estou indo para a reunião. Reunir é um ato provisório demais para os dias que não me preparei viver. Reunir é aleijar a poesia que me cabe.Quando havia tempo em meu calcanhar, costumava sair lá fora, apontar a face para o céu. Custa tempo olhar o céu. Custa chão tecer o não. Agora sim.

QUATRO

Vejo o sol nascer pelo espelho retrovisor da alma. À frente, corredores imensos, brancos de procura. Fechados em seus finais mas os olhos inventam horizontes com quem contar para cortar de olhos esta manhã geométrica.Meus dois lados acenam-se contra a despedida: dois gerúndios confundidos na neblina desta espécie de sono. É preciso levantar para limpar a dor de hoje. Engraxar os sapatos novos para os velhos caminhos.Sacudir as retinas para que mais este cotidiano renove a poeira do indesejado. Ceder o corpo ao lado de fora das paredes. Como quem ama sem prazer.Exercitar os músculos desta viagem para manter em forma o tédio. Fazer o desjejum. Correr de encontro às iscas de mais este dia, que Deus já saiu para pescar.

CINCO

Abrevio o ritmo na conjunção dos fios. Agulho arrependidas aberturas na carne anterior a esta. Tenho as pálpebras repuxadas, nervosas de lembrar. Quando ainda era morte desistir do tempo, eu freqüentava com menos cuidado as facas. Eu duvidava de Cronos com mais força e menos tarde. Hoje sou tão domesticada a esperas, porque comprimo a morte em pequenos frascos transparentes. Assim, posso vê-la como se vê um animal mergulhado em formol. Assim, posso entende-la pior. Tenho tanta tristeza da falta de escolha dos animais, sobretudo dos anfíbios que conservam a pele com eterno rancor nos lábios dos olhos. Um dia vi um humano costurar a boca de um sapo. Depois, cuidadosamente umedeceu seu corpo em gasolina, riscou um fósforo apenas para o observar o tamanho do salto. O que era o tempo para aquele anfíbio? Aperto meus pontos enquanto penso no que penso. Então escrevo para alinhavar um pouco mais o pulso esquerdo. Enquanto isso, o tempo vai cicatrizando o anfíbio em mim, antes que seja morte. Morte demais.

SEIS

Amanhã sonharei com violinos de vidro como se fosse ontem, mas será tarde. Os sons já se moveram de acordo com a luz neles refletida. E eu também já vi os dedos sobrepostos definindo matizes no latejar das pontas. Ritmo, ritmo, ritmo ou meu corpo convulso dedilhando vésperas? Sono entrecortado de escuros e a música que ocupa as frestas, seduzindo azuis quase farpas. Violinos com olhos de harpa: dois anjos tão cegos que pensam que restauram as cordas. Amanhã saberei da garganta trincada em soluços imprativáveis por causa do espelho que duplica o corte. Talvez é uma nota que pode estilhaçar lentamente o nunca até a altura do quando. Tudo que sei mesmo é que amanhã sonharei com violinos de vidro. Vidro fumê.

SETE

Voltei de escolhas. Porque eu havia desacreditado demais no amor para voltar atrás. E tive que ferir os lábios ajustando beijos a bocas que não me cabiam. Mas agora...É da transição que estou falando. De dentro da transição para a qual fui chamada ainda que agora. É do arrependimento brotado em cada estação que nasce a muda. Meus anticorpos têm funcionado bem. Na medida em que combatem o vazamento das veias que violei, também bordam em alto relevo sobre a carne, possibilidades. Por outro lado, se é dever cumprir os impossíveis, também não há escapatória quando o seu avesso resolve atravessar certas portas fechadas por precaução do abandono. Já estou com as mãos agarradas às margens do poço. Mas os pés ainda estão suspensos. Há meses trabalho na construção do impulso. Estou olhando para o salto. É para isso que recuper ei o movimento dos músculos. É claro que percebo a cilada, mas dissimulo e assim...humildemente mordo a possibilidade, quero dizer, a isca. Para saciar o corpo da entrega da entrega da entrega. Posto que amor é coisa para peixes, melhor mudar de ensaio.

                                      OITO

Ensaio sintomas de anestesia. Mais no espectro do que no resto. Manifesto-me com palavras amenizadas de vísceras. Um pouco quero ser mais fácil na medida em que me desprendo dos limbos de certos terrenos enxertados de carne e gesso. Um pouco contraceno com as mãos na tentativa de retroceder a todas as vezes que sem querer, partir. Despeço-me ao contrário já que os itinerários, de repente, perderam o senso. Estou saindo lentamente do útero do tempo. Às vezes, volto porque meus desperdícios adormecem em relógios de vento. Estou saindo em plena consciência de ser. Acumulo mais que uma dimensão no centro do peito mas não sei explicar. Improviso silêncios exteriores para poder dormir como se não fosse inútil apagar a luz depois do cigarro. Minimamente posso ver além da que me perdeu: esta outra de mim designada à contraface do espelho. Calculo a profundidade do retorno. Será difícil demorar durante a dor. Improviso túneis por dentro da música provisória que me inventaram, quando minha última fuga era esquece-la. De ouvido.

NOVE

Há noites em que é melhor não sair de casa. Noites tão banais quanto esta frase. Mas a esperança engasga em hipóteses de que deve haver um rastro de ilusão indolor lá fora. Digamos que houvesse. Eu não estaria neste exato momento preparando a devolução. Embrulho as poucas coisas, os pequenos acontecimentos que Te pedi, uns cinco ou seis no máximo, em algodão desistido de branco. Depois envolvo-os em papéis redobrados de  cansaço e com delicadeza – a de sempre – amarro barbantes por cima dos jornais envelhecidos de fé mas nunca de utilidades. Tudo o que Te devolvo está confuso do jeito que Me entregaste. Repito o procedimento para cada uma das tréguas que supliquei  sem descuidar das promessas. Inverto as promessas e não quero que penses em vingança de minha parte. Afinal, tu não fizeste nada.  Daqui há alguns minutos vou me livrar disso, destas coisas das quais as pessoas parecem precisar para funcionamento do ser feliz. Acontece que a última noite me pensou em realidade. E  ter as mãos vazias é a minha novíssima condição. Na verdade, a única. Porque descobri que é dentro do nada que dorme a euforia acima do não e do sim. Do nunca  e do sempre. Do que é amor e do que é verdade.  Devolver é difícil. Eu devolvo.

DEZ

Hoje febre. Tenho imunidade baixa às tentações do amor. Me escolhem mal. Desconhecem que tenho águas fugidias sob os esconderijos dos olhos; muitos metais naufragados no fundo: remorsos de ser mar em meio a arquipélogos distraídos às revoltas que invento, sem aprender como avisar. Antes. Não sou adepta dos finais revestidos pela fina linha da precocidade.  Alguém sempre se fere de antecipação. Contudo, esqueço bem. Me disseram que o impossível passa. Não sem máscaras. Conheci uns e no entanto isso é íntimo demais para ser narrado como ficção. Se é real não sei. Porém, os cortes estão abertos. Isso é o que enxergo através da membrana ainda latente das córneas. Me acostumei a ver. Rastejado, talvez. Há um Ser muito grande, enorme, imenso mesmo, para O qual não há adjetivos que bastem. Eu soletro a sonda em sua mão. É pequena o suficiente para as incisões que não são largas. Profundas. Então, Ele a insere lentamente de modo que os cortes não fechem e assim  não deixem de fornecer dor: este sentimento útil para que os humanos percebam sua inferioridade perante Ele. Falar de Deus é fácil. É como falar de cicatrizes que não podem.

ONZE


Estou enmorrescendo. Em cada cão que encontro morto às margens do asfalto pelas manhãs fingidas de novas. Atropelo-me de modernidade mas não sei. Não sei como organizar estas dores urbanas dentro do coração ainda humano. Penso nos cães e suas famílias.Famílias, sim. Quantos cães sucumbem solteiros.E quantos são esmagados ainda na infância, pela covardia de Scânias instantâneas.Ou seriam espontâneas? É que os homens resolveram asfaltar as ruas e os animais. Então decidi comparar. Com paro os homens ao deus: imagem e semelhança. Já os cães, assemelho-os aos homens. Salvaguardando a superioridade dos cães, é claro. Eu vi um cão mas não queria. Não queria vê-lo com a arcada dentária fora da boca.Os olhos supostamente abertos. Indefesos. Nos humanos, tem horas que vejo mandíbulas e atitudes infectas de sentimentos pardos. E eu tenho medo de tudo que não seja azul ou derivado dele. E eu tenho tanto medo de tudo que não seja cão. Estou enmorrescendo cedo e não é fácil alterar a morte destes cães em mim. Sou defensora de amigos. Amanhã vou ao dentista. Arrancar meus caninos. Por amor.

DOZE


Se eu te falasse, diria das cerrações. Tão baixas se vindas de ti. Eu falaria da escassez das promessas, pequenas demais para que eu te esperasse cumprí-las. E mencionaria falsos cristais com os quais acariciaste minha língua; Reverteria teu corpo do meu, com palavras refeitas em partículas de tempo.Protegeria os fluídos de nossa culpa posterior.Se eu te falasse, seria com rastros de beijos infectos durante a ausência. Te pronunciaria - aos poucos - o enterro dos sete vampiros que amei; Da luta permanente para resistir à vontade de acordá-los. Se eu te falasse, seria depois de recolher os olhos e a medula.Seria para adiar o inferno. Proteger-te do ódio involuntário, com antecedência. Se eu te fal asse, suplicaria as flores que desisti no solo de tuas atitudes. Inférteis. Se eu te falasse, diria das cerrações. Tão chuvas em mim, se vindas de ti. Se eu te falasse, seria com tempestades. Tão velhas que já não conseguiriam fecundar o sol. Depois,  te professaria uns futuros que seriam sonháveis, não fossem incapazes de ti. Se eu te falasse, não bastaria.

 

TREZE

"Depois de uma grande dor,
vem um sentimento formal.
Os nervos ficam cerimoniosos,
como sepulturas."

Emily Dickinson

Anunciações de chumbo. Flambados os terrenos de nossa última noite. Foi assim que desaprendemos juntos o que é o amor. Foi assim que renunciamos as mãos desertas de tentar. Porque é mais inútil. Por  isso dedicamos tanto tempo: para nos afastarmos melhor. Conservamos as dúvidas, as inseguranças e uma ou outra obsessão, com a finalidade limpa e exclusiva, de encerramento. Sou protetora de animais. Foi por eles que aprendi a chorar. E tu sacrificaste teu cão apenas porque ele era um risco de delicadeza aos teus escudos. Foi com o amor que te acostumaste a sacrificar os cães, eu sei. Para que eles não chorassem mais ao te ver entrar no carro, não é? Comigo também foi assim.


QUATORZE

“Talvez Ela me faça perdoar as ambições continuamente esmagadas – que um fim azado repare os tempos de indigência – que um dia de êxito nos adormeça sobre a vergonha de nossa fatal inabilidade.”

Arthur Rimbaud

Quisera estar em coragem de resistir. Mais. Abraçar esses dias que faltam para ancorar a luz. Quisera ser obediente às ordens do caos sem praguejar na convulsão. Atender aos comportamentos que o tempo exige. Disciplinar as fugas - quem sabe dessem certo -. Amenizar os escombros do amor infiltrados na pele. Restaurar os ossos da tolerância, quebrados com requintes de falsidade. É que estou a caminho das jaulas e vejo animais muito tristes por aqui. Agora, por exemplo, estou olhando para uma coruja cujos olhos estão quase fechando, porque apesar da chuva, o dia está claro e não há florestas particulares em sua jaula. Então só lhe resta olhar para mim, a que passeia no domingo.  Gralhas azuis parecem mais racionais. Por serem menores, têm mais espaço para os movimentos.Conformadas com o os que riem para não chorar. Não sei se vou ao zôo para dar mais valor ou para constatar o quanto não vale nada. É de respirar que estou dizendo. Se é para ir ao zôo, que se vá na chuva. Há menos humanos. Quisera não desmerecer estes animais. Mas sou da espécie que lhes presenteia com cárceres. Quisera estar em coragem de resistir à voracidade das pessoas. Mas neste momento tenho dores botânicas. Vou chegar tarde .

QUINZE

Poema de hoje. Invertido em minhas costas. Chicote de palavras por causa de tua boca. E meus escudos crescidos. Apaziguados.Convertidos por tua meia-ausência. Por que às vezes voltas para me falar de avencas no quintal? Avencas são conhecidas por sua delicadeza e fragilidade. Também servem para espantar mau-olhado.Avencas murcham na presença de pessoas com energias negativas. Na medicina popular, servem como calmante e também para tratar dos problemas bronquio-respiratórios. (Brônquio é uma palavra bonita)
Também ornamentam bem, dizes. E eu te respondo que sim, enquanto ela boro poemas em frente ao computador. Finjo. Finjo que são poemas. Mas na verdade são avencas. De voltar.

DEZESSEIS

Já decidi o que é escuro. Não vou mais me suicidar de ti. Não preciso de ajuda para este aborto tardio. Auto-aborto é o que quero dizer. Para ser mais explícita, posso mentir para mim mesma sem notar. Eu sempre demoro a nascer, por exemplo. Sou a de sonhos invertebrados e tudo agora já está chegando ao começo. Tenho séculos de evolução. Já sei voltar, lembra? Pressinto as emboscadas e defender-se é quase sempre, um risco. Mas de riscos até que entendo. Desenhei muitos destinos para as vertigens. Viagens que consagrei aos deuses. Por que sou eu a de deuses tão limitados? Atravesso estados de desalma. Deus me treina para a morte e eu faço de conta que já sei. É cansativo. Esse delírio que não é passageiro. Esse gosto de chuva na boca de minha infância. É perigoso. Esse gatilho sonâmbulo da memória. E minhas duas mãos separadas dos pulsos. Ah, s e fosse apenas dor.

DEZESSETE

Visões. Tu. Montanha imaginária. Logo superfície. Lago evaporado nos pulmões. Pânico de vulcões. Rima desprotegida. Planice. Delicadeza em trégua. Armazenada. Chega. A hora insaciável do adjetivo. Central. Azul escurecendo. Dadaísmo vivo com recortes de pulsos. Falsos os teus. Em meus. Sinais. Nuvem terminal. Urso polar. Carícias de granizo. Não. Ferro. Ferrugem convertida em vidro. Agora sal. Lavando os pés após. Pregos. Apegos. Silêncio em construção. Tesouras de dormir. Deus. Por que? Parque de aversões. Anestesia leucêmica. Karma. Amor clichê. Alma transversa. Peixe na pedra dolorida. Ex-camas. Letras carnívoras. Desejo em cânfora. Sonhos empalhados. Nuncas de metal. Animal de desistir. Eu. Violinos de estimação. Vi. Visões. Antes dos olhos.

DEZENOVE

Cansei do infinitivo.
E não é que tive que me submeter ao desperdício de minha fúria, por engano à tua? Indiferença não prometida, atuando como flecha que acaba de atingir o eixo do antisonho. Esse que há em ti. Uns laranjais por dentro.
Para desatar-me de teu alvo em gomos de impossível, rastreio sonâmbula a faca de tuas mãos. Para encontrá-la mais tarde soterrada no corpo dos descuidos, é que amo. 
E amar requer requintes de cicatriz.

VINTE

“...que seus licores filtrem-se em mim,
nessa cápsula de vidro,
entorpecendo e apaziguando.
Mas sem cor. Sem cor alguma.”

Sylvia Plath


Vazios. Prefiro os antes.Uns arrozais plantados nos olhos da infância. Viagens. Gostava dos asfaltos de domingo. E uma calma implantada por Deus, quando me cuidava. Agora azuis devastados. Estradas gerais, apenas. Brancos incontestáveis. Aventais de chuva. Bolinhos de avó.Ontem. Agora sal. Superfície de areia. Extremidades no caos. Menos. Cemitério em mim. Águas extraviadas. Brasas sobre a pele. E uns dentes esforçados no verbo. Sorriso dentro. Uns dedos inventados em anéis de cortiça. Amores de isopor. Baixo ponto de ebulição. Da lágrima.
Pormenores mortais.
O de sempre.

VINTE E UM

Quando me soletro de ausência, crescem vestígios de sal feito caramujos que já não são.
É uma dor sem osso. Calabouço nas conchas que construí para proteção dos externos.
Cavernas imaginárias não precisam de sol para decifrar os dias. São relógios de pedra desgovernando pulsos. São bússolas canhas à minha escrita. Quando me soletro de ausência, recolho as pedras para dormir antes. Amanhecer é um luxo para os que já não contam.É sempre um lucro indevido aos que confiam demais na fuga. Tenho vocabulário repetido de sentimentos, o que é sempre uma traição à literatura. Adultero palavras. Sou da família dos musgos que se desenvolvem em locais pouco iluminados. Insisto em plantar cores novas no solo das sombras. Para que brotem outras. 
Sombras são minhas flores mais recentes. 

VINTE E DOIS

Meus dias e noites estão capazes de escavar rios de faltas. Sei que certos plurais não soam bem. Foi assim no amor. Melhor nem falar do tempo. Atualmente,  ele é apenas um vestígio de sacrifício em minha poesia. Talvez eu esteja vivendo no oitavo silêncio: sob os escombros não consigo dizer palavra. Mas tento sair, como quem acena a mão, na tentativa de que alguém perceba que há  sobreviventes aguardando resgate ou quem sabe, outra fuga.Tenho palavras soterradas comigo, agora. E ainda que eu esteja imóvel, algumas escapam pelos bolsos, outras pelos poros e outras, sabe, outras permanecem em coma por dentro de certas veias "panfletárias", em vias de derramar, é claro. Não quero "eleger" a minha morte. Ela já faz "campanha" em meu cerne. Por isso trabalho moções de repúdio ao que me faz tão longe. E longínqua, permaneço nos amigos. Sem olvidar.

VINTE E TRÊS

Salivar de sol cada manhã mal desenhada, quando bebo uns cafés semelhantes à vida: insolúveis. Deve haver um reflexo de verdade em nada disso. Mas perguntar é insone demais para sorver o risco de acordar por dentro. Faz águas decretei silêncio aos invisíveis que me pronunciam em amor. É que as palavras ficam rasas em xícaras de carne. E é de porcelana esquecer.

VINTE E QUATRO

Tão simples. Bifurcar a morte.Vedar-se no anticoração das coisas. Proteger a chuva do corpo, nas enxovias de dormir. Mas há pedras que não se conformam. Atire o primeiro pecado aquele que não teve pedra. Eu lutei e não sabia. E não vou agora explicar uma por uma, as fugas do sentido.Tão simples. Reinventar o que não sobrou, é uma arte. Sou abstrata por falta de natureza. Empalho flores na ante-sala de estar. Estou.

 

VINTE E CINCO

Não sei alinhar. Os horizontes acumulam-se turvos como águas quando estão trevas. Tão graves como facas quando aparentemente cegas. Vejo um bate-estaca no horizonte principal. E brancas luvas que operam alavancas. Duas. É que Deus faz suas reformas. E até que termine, habito uma vida de concreto. Provisória. Com vista para a morte. - O amor constrói.

VINTE E SEIS

Os anjos devoram as sobras. Restauram as dobras.Tentam. Dormir-me antes dos sabres. Os anjos não me terminaram porque fui prometida ao sol. Mas dilúvio todos os dias. Sou aprendiz de barcos.

Então rezo de olhos e dias bem fechados. Ajoelho-me para o esquecimento. Tenho um anjo esquerdo que não sabe amar. Direito.

VINTE E SETE

Sucumbir é assim. Imolação de ontem. Aderir à curva com o Deus atado. Colidir-me em cercas de arame por meios-dias farpados. Ilesa às ferragens mas nunca às ressurreições, trago a dor invicta. Por ser a morte apenas um atalho, é que a erro incessantemente. Contra a vontade, tenho visões escarpadas. Adoto métodos artificiais para resfriamento do sangue. Aceito transcender a escapatória quando percebo que certos hematomas, já não me cabem mais.

 

VINTE E OITO

Não sei cuidar de flores. Um amigo as conserva para mim. Comigo, morrem de silêncio. Sou desigual. Acostumada a plantas mais carnívoras.
Suas raízes não distinguem a minha dor. Cedo fui arrancada pelas promessas. Há muitos labirintos até que eu possa brotar. Já posso desistir das luas.
Estou no último eclipse, pai.
Nada mais me encobrirá.

VINTE E NOVE

Estou em viagem na cidade de guardar amores. Sob as pedras do calçadão, um dia protegi bilhetes de voltar. Á noite, retrocedo ao teu corpo para consentir o acaso.
No entanto, já sei hospedar-me sozinha. Compreendo que no dia seguinte, serei a anfitriã das paredes estáveis que sustentam o prédio no outro lado da rua. No parapeito de uma pousada, habito pássaros anônimos.
Enquanto reverto telefonemas da memória, andarilho kilômetros de isolamento. Organizo uma procissão de palavras e vou à Catedral treinar arrependimentos. Ascendo duas velas que reservei à escassez de minha fé em crescimento. No dia dos mortos.

TRINTA

Viagem de retorno. Regressar é difícil. Principalmente quando não se pode ceder aos desvios. Por dentro, os roteiros são os mesmos. Os mapas estão fixos. É tudo tão redundante. A morte compreende alguns caminhos. Perdoa a dança das migalhas. Mas não respeita uma vida fútil por amor. Casa de seixo. Deixa-me ir. A solidão está convicta de que vou separar as conchas. E remover os peixes. E aliviar o sal em sua pele. É tempo de subtrair. Dos sonhos o menor. Dizem que sou doce.
Amanhã terei formigas na boca.

TRINTA E UM

Para dormir, recorto sombras em movimentos antigos de perdão. Amorteço os olhos enquanto embrulho rosários nos dedos repetidos de esperança. Encanto a penumbra casta, violentada de aguardar. Para dormir,  paciências de vulcão. Nomenclatura de um Deus repetidamente desfeito. De um Deus soluçado no entremeio das noites. É tão antigo desproteger-me do futuro, que inauguro acasos. Amontôo-os para uma possível decomposição da agonia. Contorno a insônia em espiral.
Depois, acordo cedo.

TRINTA E DOIS

Amores de argila. Cilada de cada dia. E um breve quebrar de sua ausência antecede o silêncio definitivo de toda a tentativa. Tentativa de quê, mesmo? De invalidar. Os gestos, os restos e as forjas. Feito um Hefestos, moldar o coração em metal. Depois do barro. Depois da lama. Luzir o corpo em água. Purificar o ferro e o fogo.
É que eu sem você, estou ficando nítida.

TRINTA E TRÊS

Já sei a seqüência. Escândalos. Reparos. Restabelecimento das ilusões. Luzes de areia. Estou secreta de preces. Coleciono tiros pelas costas. Desatenta da possibilidade terminada, quero morrer de algodão. Agudo. Algoz. Chorei trinta e três noites. Por hábito de ausência. Mal hábito. As estruturas também mal acabadas de uma alma, demoliram meus edifícios. Assim, de imprevisto. Sem que eu recolhesse os pertences. Arquiteta de sombras, vasculho flores nos escombros.
A trigésima quarta noite,                        
é hoje.

 

                                               

TRINTA E QUATRO

                                               

Sábado. Hoje, como sempre, não fui ao cinema. A tarde me ensinou fantasmas. Depois, dei de comer aos cães imaginários. Agora terei que pensar que você morreu, para romper com a unanimidade das armadilhas. Enquanto me preparam. São cordas trançadas de inviolável, que celebram o momento de não me prevenir. Tenho aparentes defesas. Imprestáveis para a salvação. Esperei pelo qüinquagésimo dia, teu telefonema. Domingo.

Patrícia Hoffmann

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