TORNO A OUVIR O MARULHO DAS ÁGUAS NEGRAS

          Somos as nossas imagens. Quem imagina um deserto, no dia irrestituível, se refugia em sua própria desolação. A planície se abre para quem deseja evadir-se ou perder-se no mundo como uma dessas formigas transviadas que a ambição desviou do carreiro. O marulho das águas negras de uma lágrima, que eu ouvia durante a minha infância em Maceió, e tornei a escutar em Veneza, impõe em mim a direção de um universo em que os elementos mais contrários reclamam adesão e conluio.
          A presença de mundos apartados, de matérias situadas antes das partilhas, é como a respiração dos amantes após o amor: ainda enlaçados e aprofundados um no outro, e misturados em suas águas cúmplices, já se acham contudos afastados pela súbita supressão do êxtase. Na lama fétida da lagoa, escondem-se a água universal do oceano e a areia profanada pelos miasmas desagregadores. Na cronologia pulverizada em que sou, ao mesmo tempo, sumiço e aparição, o minuto que passa tem uma fervilhação de formigueiro aberto! e as imagens profundas mais uma vez disputam o reconhecimento solar de um dia ofuscante como o verão que ilumina os lagartos entre as pedras. O vento, passageiro como um deus, deixa intactos os ninhos.
          As mangueiras que palpitavam sob as chuvas grossas das madrugadas antigas — quando o lençol do menino insone se levanta como a brisa nas veias dos galeões pejados de ouro dos piratas — voltam a arfar na alameda mentirosa que franja meus sonhos devastados pelo martelar monótono das ondas. As estrelas mudam, repentinamente de posição, como as luzes dos aviões na curva celeste que antecipa a proximidade do aerporto. E eis-me de novo diante do dia, que é uma sucessão infindável de janelas abertas; e eis-me de novo diante da noite recendente aos laranjais em flor.
          Mas todavia desabrimos a mão da massa confusa de seres e lembranças, sonhos e desconsolações, trabalhos e cóleras. E de todo o cadastro pessoal resta apenas, lumalha na escuridão, a imagem de um menino diante do Oceano, e que escuta, nas vagas e ventos acumulados ao redor do estaleiro apodrecido, a longa melodia da memória para sempre vitoriosa — essa música abafada, essa euforia das águas golfejantes e reunidas na foz do tempo, essa respiração do mundo que, importunando os vivos com a sua reiteração, já não tem prestígio sobre aqueles que, defuntos, estão além da desolação e da morte.

Lêdo Ivo

Do livro: "Confissões de um poeta", Difel/MEC, 1979, SP/DF

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