QUARTO NÚMERO DOIS: a dor
Dez a zero com chutes de esquerda. O armário veio abaixo sobre minha cabeça: latas de ervilha, doces em conserva, amores platônicos. Dez a zero com deslizes do árbitro, trapaças do bandeirinha, vaias da torcida. Desprezo. Sapatos desconexos pelo asfalto da cidade que me olha com olhos de fogo, crispados. Porres homéricos nas rondas pelas esquinas. Desprezo de olhos castanhos. Confusos. Sempre a mesma imagem: sentado à mesa, braços ao logo do apoio da cadeira, esperando. Grande janela de olhos abertos e obtusos escancarados em minha frente. Carros sobre abismos, lanternas, sirenes, torcidas adversárias em disparada. Lilases sombras deslizando pelo teto. Dez a zero com falhas técnicas e passes errados. Sem chutes a gol, sem artimanhas. Pensamentos driblam rápido o raciocínio com táticas impensadas que filósofo algum ousou. Ecoam. Ressoam fogos de artifícios, balões coloridos, cartas suicidas. Braço ao longo da mesa, esperando. Num átimo de segundo, uma abelha pousa sobre a margarida vermelha da toalha de plástico à procura de pólen. Lembrança de menino. Capitão do time, dono da bola. Tiros certeiros nos territórios desconhecidos da vizinha ao lado. A bola de capotão ainda pesa no ombro. Dez a zero com chutes no estômago. A tempestade de areia explode a vidraça em estilhaços. Dez a zero. Silêncio.
Karen Debértolis
Do livro: A estalagem das almas, Travessa dos editores, 2006, PR