Além daqui, o deserto. Logo ali, onde termina casa e muro. Meus olhos nunca se cansaram desta poeira e estão sempre a postos para observar aquelas almas perdidas que se achegam com reservas neste fim de rua. A palha da cadeira, em que estou sentado há anos, está gasta e cede. Fica assim, então, meio incômodo equilibrar-se quando chega algum hóspede. Mas, este é o único problema. A casa é velha e fosca. É a última antes da vastidão de sacrifícios e terra magenta. É a ante-sala das provações. Aqui se ama, se odeia, se definha, se enlouquece, se morre. É a última chance, a última parada antes do deserto. Estão cravados pelas paredes, corredores, azulejos, frestas desta casa, histórias de civilizações estranhas, de reis, plebeus, alquimistas franceses, professores de latim, mulheres depravadas. Rondam por aqui fantasmas dos viajantes insanos que se embrenharam nas terras distantes, logo ali em frente, em busca de miragens. Aqui é a parada daqueles que não têm mais para onde ir. É a última tentativa de quem já apostou todos os dados e tem apenas uma mala de couro velha e suja. O mundo inteiro me conhece. É para mim que recorrem os aflitos e aqueles que fazem as perguntas pela humanidade quando os livros não trazem respostas para explicar os mistérios. Já fumei charudos com presidentes, trafiquei ópio na fronteira da China, fui sacerdote em Amsterdão, assassinei baleias, dormi com homens, casei com mulher barbada e fugi com o circo. Cheguei nesta cidade sob os olhares de desconfiança da população local. Naquela época, em frente a esta casa umo velho indiano tocava cítara toda a tarde. O céu avermelhava e caía uma chuva fina, douradíssima, somente ali na esquina sobre uns coqueiros vindas da América do Sul.

Karen Debértolis

Do livro "A estalagem das almas", Travessa dos Escritores, PR, 2006

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