A casa fosca e velha. A porta rangendo. Ela sentou-se na cadeira vazia. Nem vento. Nem nuvens. Nem uma vaga lembrança da umidade que fosse. Debaixo do sol fosco ainda acreditava-se sonhando. Vagando por umas paragens dentro de sua cabeça. Não planeta. A areia já cobria o seu quadril, desfolhava o seu livro mais precioso que trazia consigo e tinha rasgado boa parte da costura lateral de sua camisa. O certo é que alguns já haviam chegado. Ele ouvia a respiração ofegante, os devaneios, os pensamentos fazendo barulhos dentro das cabeças, ampulhetas do tempo. Desvencilhado da torrente de areia que o prendia pelas pernas, reorganizou seu mundinho. E depois seguiram-se turbilhões de coisas. Uma tempestade seca. Árida como os sentimentos mais perigosos — a desconfiança, a dor, o medo, a saudade, a melancolia, a raiva, o amor, o desespero. E como miragens, destas que povoam as histórias contadas pelos beduínos aos turistas, viu desdobrarem-se, à sua frente, todos os melodramas, as derrotas, os amores que espezinham, a pobreza de espírito. Homens e mulheres presos ao mundo oculto de seus quartos. A força suave da areia rompendo seus segredos. Tantos murmúrios de dor sufocados em um estampido surdo em um momento rápido, em um segundo efêmero. Na confusão de pensamentos lembra de ter arrastado carregado afagado acolhido diversos corpos. Loucos que teimavam em embrenhar-se no abismo de ilusões, onde nem mesmo os camelos suportavam o fardo das altas temperaturas. Na noite dia louca louco, não sei bem definir ao certo porque a lenda deixa dúvidas sobre os fatos, ouviu grgalhadas duros estampidos de balas anéis voando algum insano gritando por chuva um sabor incontrolável de alho dourando.

Karen Debértolis

Do livro: A estalagem das almas, Travessa dos Editores, 2006, PR

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