QUARTO NÚMERO SEIS: a sanidade
O péssimo hábito de me apaixonar. Sabedoria: compreender o momento de tirar o coração de cena. Levá-lo à lavanderia para tirar as manchas dos erros: acreditar em mentiras, enveredar-se pelos olhos do amado, ficar esperando sozinha na sala de visitas. O amor é um defeito. Somos insanos. Nos entregamos irracionalmente ao prazer, nas noites de estrelas, juntos na cama. Nos deleitamos com os carinhos das mãos que passeiam avidamente pelas dobras e reentrâncias do corpo. Em meio à areia escura. Sons distantes de flautas nos enganam a cada esquina e embrigam os olhos e os ouvidos secos de poesia barata. Falsos risos, gargalhadas insanas que permeiam as noites alcóolicas. Me recordo ainda de um dia nebuloso em que andávamos pelo quarto à procura de alguma explicação para a agitação de nossas almas. No meio de um giro completo em volta da cama, você, com a insensatez de seu olhar masculino já turvo pelo desespero do cotidiano, pôde catar pelo chão palavras incrustadas em pequenas conchas.
Lembranças de sons do mar, diria meu pai quando ainda lúcido. Mas, o caso é que, daqueles dias, ou, bem precisamente, há duas semanas, turbulências atingiram a região. A areia inundou o quarto trazendo inúmeras conchinhas coloridas que ficaram ali no canto esquecidas. Na noite anterior, havíamos discutido sobre problemas de incompreensão emocional. Você me dizia ao final de cada frase: Oh!! OK baby! Não sabia ainda, mas meu ohar já tinha ultrapassado o vidro da janela e quebrado os limites das possibilidades de visão. Ao meu lado, você cosia palavra por palavra, tentando tecer racionalidades sobre o nosso amor. A agulha já estava enferrujada e a linha rompia-se a cada ponto. Pela primeira vez, há mais de dez anos, desde quando mudamos para este minúsculo quarto, pude observar a paisagem clara que se abria em minha frente como uma miragem através da janela. Uma rua ao centro de uma cidade imunda. Prostituas acariciavam com paciência e habilidades o sexo de transeuntes que passavam por ali à procura de aventura. Palavras desconexas tentavam com insistência romper a barreira de meus ouvidos. Permeavam o discurso, que soava pelo quarto com voz grossa e calma, pedidos de desculpa, teses de ciúme, ditados de tios, moral de histórias de infância. Tua mão obsoleta sobre meu ombro. Teu tédio desabando sobre nossa cama. Palavras entupiram meus bolsos sujos de restos de areia. A ira nublou os olhos. Sua voz zumbia no bulbo do cérebro. A adaga ferina consuziu minha mão em direção à sua garganta sibilante. O sangue misturou-se aos mistérios de areia trazidos pela tempestade vinda ali das bandas do deserto vermelho. Meus olhos gritaram um olhar aterrador. E a lua retirou-se rapidamente detrás das nuvens.
Karen Debértolis
Do livro: A estalagem das almas, Travessa dos Editores, 2006, PR