O oco do zero
depois que abandonei a metáfora e a palavra literal, que abandonei a representação e a apresentação, depois que eu me exilei da escrita, que eu deixei de dizer, depois que eu não diga mais nem eu, nem nós, nem ele nem ela, depois que nenhuma palavra seja mais suficiente, ou mesmo insuficiente, que já não importe mais dizer ou não dizer, que a potência é impotência e que a impotência é potência, e qualquer escolha que venha a fazer uma apagará a outra, e nada será dito nem escrito, depois dessas nulidades todas, do niilismo, do ceticismo, desse emparedamento que transforma a escrita e a fala e os dizeres todos, cinemáticos, em sem lugares, em nem vazios nem cheios expressivos, mas essa massa amorfa do meio termo, mesmo que um meio termo cheio de charme, cheio de insinuações, de adereços, de seduções publicitárias, cheio de performances do tipo sim eu escrevo, sim eis a diferença, eis a outridade, eis uma escrita neobarroca, corporal, fragmentária, multicultural, de pisca-piscas inclusivos, que põe em cheque os cheques cauções e também os calções masculinos, políticos, imperiais, enfim, mesmo esse teatro de máscaras fingidamente não niilista, mesmo ele diz para enganar os que esperam a palavra precária que seja, dentro da precariedade, dizer o provisório visionário, a alegria que não expulse as tristezas, que as abrigue, e as alimente de alegrias, as engorde com bastantes risadas, cultivando as suas muitas presenças, mesmo essa escrita manca que deixe a alegria falar na tristeza e a tristeza na alegria, mesmo ela, depois que ela não é mais possível, depois que a gente fica ansioso pra reescrever os passados, e muito pouco à vontade para reescrever os presentes e os futuros, depois que o sal da vida se tornou salgado ou, menos que isso, indiferente, que tanto faz como fez, a rua ou a casa, a esposa ou a amante, que você acredite que tudo já foi dito, então, é hora de começar, e deixar de lado os recomeçares, e todos os outros re e repetições, é hora de começar do oco do zero, de escrever o que ninguém escreve, muito menos você, leitor niilista, muito menos ainda eu, escrita covarde, é hora de começar endereçando a carta da escrita pra um leitor que não seja niilista, que não seja leitor, nem autor, nem personagem ou nome de algum ente, que esteja fora do verbo, que também não queira ler a carta das escritas que dizem de tudo que já torturamos e matamos e sacrificamos, em nome de deus, da ciência, da razão, do dinheiro, da fama, do medo, da fraqueza, da poesia, da escrita, do amor, é hora de endereçar a escrita pra você mesmo, embora não ao seu endereço pessoal, de seus narcisos, mas pra suas distâncias perto, e então, delas, das suas distâncias, cunhar a aventura das escritas, no surto do parto
Luís Eustaquio Soares