MUDANÇA

A parede tem buracos vazios.
O assoalho tem as marcas dos móveis como cicatrizes na carne, escuras, fundas, como a marca de uma roupa apertada fica no corpo da gente, as janelas fechadas guardam os cheiros em cada quarto, em cada armário deserto e na sala os odores se misturam como estamos misturados agora eu e esse apartamento, eu e essa terrível solidão, eu e essa velhice que se aproxima sorrateira como um rato sujo, eu e esse vazio, o eco das vozes, a poeira, o varal sem roupas, as lâmpadas nuas, o silêncio, o espelho do banheiro guarda o segredo dos corpos em todos os feitios dos anos, os rostos solitários de monólogos, os dentes escovados, a barba feita, a primeira, a última barba feita, os cabelos compridos escovados, o chapéu ridículo da festa de casamento, a memória é faca afiada que decepa, a memória nítida, detalhada, minuciosamente cruel a memória recompõe, sento no chão que sou eu e choro.
A chave sem chaveiro na mão suada que tranca a porta pela última vez.
Eu estou só.

Glória Horta

Do livro: Sangria, Ed; Achiamé, 1987, RJ

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