QUARTO NÚMERO DOZE: a passagem

E se do pão se desprendesse o tom roxo da paixão anunciada pelo rádio. O fogo e todos os elementos desabariam sobre o corpo do universo tomando o espaço das estrelas verdes. Num passo rápido de dança. Olhos azuis sob a lua. E se o líquido roxo se deretesse pela terra e manchasse as entranhas do planeta. Insurgiriam-se os mares, provocariam-se os ventos e a desordem nas seivas das raízes. Um clarão insólito depois de uma nublagem da escuridão. Sensações se arrastam em meu corpo. Eu morro. E volto à vida no instante seguinte. Olhos azuis em tom roxo de paixão. Arrumo a gaze sobre o pé direito, ferido enquanto eu corria de uma manada de elevantes durante uma caçada na savana africana. E as lembranças vagam e, por vezes, duvido se penso. Poque em alguns minutos não sei bem classificar o que são todas aquelas imagens que passam por minha mente. Tenho as pernas cansadas e a pele enrugada. Morro. Não morro mais. Ela vem pesada e cruel. Vestidos de cetim, perfume, aragem. E seu cheiro passa perto e forte. Mas, sempre me esquivei porque me ensinaram que devo respeitar uma dama mais velha. Porque sempre soube de sua face horrenda sob o véu preto. Vou e volto. Faço e desfaço meus laços daqui desta aridez. Tenho a boca seca. Eu sei que ela me espia. Desvio meus olhos e choro. Mas é um pranto seco, sem lágrimas. Porque não há mais líquidos em mim, só o barulho do sangue, o marulho do sangue como em ondas pelas veias que já doem. Não é mais meu corpo que resiste, mas sim o mecanismo enferrujado do meu cérebro. Na engrenagem frágil, poucas lembranças. Um final de tarde à beira de um rio, eu ainda menino seguro a mão de meu pai. O sol se põe e observo sua mão dançando no crepúsculo. Minhas mãos não têm mais forças. Já afastaram muitos de mim. Como numa dança, um grand finale desastroso de um passe de dança. Um braço quebrado, um corte no ombro. Tenho agora todo o tempo que sempre precisei, que sempre reclamei para realizar as coisas que estavam anotadas em minhas llistagens de "a fazer". Tenho todo tempo do mundo para ler os livros que nunca li, para ouvir as sonoridades do mundo que sempre odiei. Por não entender. Sempre dissimulei, distorci os fatos, nunca falei claramente o que queria. Tenho todo o tempo do mundo e não tenho mais tempo. Minhas mãos não obedecem, minha memória falha. Os sentidos: apenas meus olhos que perseguem a pouca claridade que se concentra num canto do quarto. Tenho sufocações. Falta ar nos pulmões durante a noite. Espasmos. Engasgos. Uma úlcera queima o estômago. Queima a cada minuto. Amanhã talvez chova. Amanhã, logo pela manhã, uma chuva fina pelo meu corpo já maltratado pelas inúmeras manchas do tempo. Logo nos primeiros minutos de raios de sol que vão entrar por esta janela, embaçada de areia. Antes de tudo, agradecerei a mão amiga do estalajadeiro que, durante não sei bem quantos anos, tem limpado os ferimentos e trocado as gazes do curativo. E passam como um filme dentro da memória preto e branco com glamour minha mulher meus filhos minha casa meu pai quando velho. O último olhar sobre todas as coisas. Meu coração se aquieta. Já ouço o barulho da chuva a caminho.

Karen Debértolis

Do livro: A estalagem das almas, Travessa dos Editores, 2006, PR

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