De chofre, em meio à mais trivial das conversas, uma pessoa
que me era quase desconhecida disse-me ter eu belos olhos
castanhos claros, e tristes. Sobrevivem a ti aqueles a quem
tu amas?, acrescentou, com voz laminar.
Dei as costas àquela boca e, sem sentir-me ofendido ou em
júbilo, com passos aparentemente firmes e olhos naufragados,
logo dobrei a esquina. Uma esquina comum, semelhante a
milhares de esquinas outras, determinante naquele instante,
porém, posto que, antes da pergunta, eu pretendia uma
direção sem atalhos ou desvios. Habitualmente acesso
para
uma movimentada e ampla avenida, não foi isto, no entanto, o
que vi ao dobrá-la. À minha frente, vazio qual o que
estou, Ah!
réponds à ma tendresse! Verse-moi, verse-moi l'ivresse!
foi o
refrão antigo que me chegou ao pensamento, a calçada
que
senti quase por sob meus pés.
Ali, no estranho caminhar só meu, alguém distanciado de
dores
poderia tentar raciocinar que calçadas são tão-somente
espaços para pedestres e que refrões antigos já
se passaram
sem dar-se conta que qualquer dor, em qualquer tempo e por
qualquer causa nada mais é, em nós, senão a repetição
transfigurada de nossa primeira dor. Pendentes ou em euforia
frondosa, não são todas as ramagens galhos? Não
têm o
mesmo desencanto tanto as verdades brutais quanto as
insípidas? Sofremos mais, às vezes, um pouco menos, outras,
mas jamais diversamente da maneira como sempre nos
descobrimos a sofrer. Afinal, somos nós mesmos aqueles que
envergam diferentes máscaras nos bailes freqüentados.
Com os ditos belos olhos castanhos claros que tenho,
naufragados, meus passos eram aparentemente firmes quase
por sobre versos franceses não por uma aberrante questão
de
elegância sofisticada mas por tudo o que não sei e nem
me
preocuparia em explicar assim como por saber ser impossível,
em meu idioma, em minha insubstituível fantasia, qualquer
rimar de embriaguez com ternura, poeta que insisto sempre
não ser. Sim, versos franceses, precisa e unicamente estes,
no monólogo que sou e dos quais me importava apenas a
tendresse.
Ao meio-dia, Sobrevivem a ti aqueles a quem tu amas?, foi o
que de chofre me perguntaram. E fez-se noite. Uma noite
repentina, longínqua porque trazida para dentro de mim, sem
misericórdia, sem estrelas, também sem uivos pouco antes
do
meu dobrar de uma esquina. E, de súbito retornado ao lado
oculto, andei dentro desta noite, sozinho ao longo da avenida
outrora repleta de pessoas, eu, a quem teria bastado a
observação que, considerados belos, meus olhos são
castanhos claros, e tristes, por já os saber e desconfiá-los
assim: eles, à revelia e, aqui definidos com um lirismo
excessivo mas preciso, proporcional às dores que abrigam,
sugerem tristeza qual o que possa existir de sutil lamento em
pétalas apenas caídas e voltadas para a rosa cor-de-chá
que
longe ficou. Apesar de aparentemente firmes, não sei se meus
passos eram lentos ou apressados. Sei somente que eram
passos meus, passos ao longo de uma avenida escurecida ao
meio-dia, passos quase por sobre versos. Sei também que não
ousavam pisar o equivalente da ternura, dirigidos que estavam
à ivresse. Disso me lembro, a despeito do olhar submerso,
lembro-me do buscar daquilo que me embriagasse.
Sob meus pés, versos e calçada, então. Em plena
avenida, no
alongar-se desse percurso, nenhum alento. Nem sinfonias, nem
sonatas. Quiçá multidões a cercar aquele desabitado
em mim,
sem dúvida silentes. Mas, perseverante, um ruído. Desde
sempre, desde há pouco, o mesmo. Abafando as rimas
emprestadas que sem outro recurso lancei ao chão para que,
não pisando o solo, se apagassem rastros, não restassem
quaisquer trilhos vencidos, o ruído, este que se iniciou quando,
de chofre, me foi perguntado o destino dos que amo.
Sobrevivem a ti aqueles a quem tu amas?, e o som,
sentencioso, um ruído seco qual aquele do risco quase reto de
final de assinatura por sobre pergaminho com pena de ganso já
quase sem nanquim.
(Aterroriza-me a facilidade com a qual este ruído é perceptível
em minha alma. Quisera-o como o barulho de, por sobre o mar,
despencados luares ).
Ah! réponds à ma tendresse! jamais tinha sido,
até este
inesperado caminhar, uma pretensão de meus gritos, quando
gritos meus haviam. Resposta em canto, apenas, fora sempre
o embriagar-se livre, com amor, tanto da ternura que recebia
quando daquela que dava e nunca me afeiçoei ao que não
era,
não sabia ou não queria ser feliz. Dos que deliberadamente
se
excluem, aceitei, sempre com reservas, embora com respeito,
apenas os que não o podiam, o ser feliz. Abri mão, deste
modo, de exames de consciência porque desconhecia o
transitar das afrontas. Também, em momento algum pude
colecionar o que quer que fosse devido à ausência de risos
nos
utensílios, nos objetos. Natural, já disse, frente ao
amor,
acreditava invariavelmente mais na forma com a qual um alheio
olhar se demorava meigo em mim que em promessas por
demais verbalizadas de eternidades. E era isso o que sempre
busquei no amor em resposta à faminta ternura que eu
encerrava: a felicidade do essencial no vital quase
imperceptível. Voluntariamente, em nenhum momento me
consentiria o torturar-me por pouco e nem me daria ao
trabalho de rejeitar, o que quer que fosse, com obsessão.
Apenas declinaria, como sempre o fiz, porque o
obsessivamente rejeitado sempre pareceu, a mim, por demais
desejado e tudo o que desejei, respondeu com amor à minha
ternura, sem obsessão. Assim, entreguei-me sempre de todo à
embriaguez de supostas inexistências de rimas ternas.
O meu vagar quase por sobre versos, contínuo, não cessa
pela
avenida. Monólogo, afastado do chão e sem atrever-me
a
pisar a poesia porque não sou poeta, pronuncio o que não
me
fala a boca mas me escutam os ouvidos. São palavras, quase
à tarde, graves, aberrantemente noturnas. Sem base nos
sonhos e porque, ali, cúmplice da noite somente o pouco
nanquim de minha brusca sentença ruidosa, são palavras
vermelhas, rutilantes, fatais. E não cessa o meu caminhar.
Limítrofe ao que não compreendo, disto, ou pareço
distar, do
resignar-me e mantenho, tristes e naufragados, meus belos
olhos castanhos claros, ditos. Se não rimo, alcanço sempre,
porém, o que não tem a capacidade de rimar, e perscruto.
Longe, muito atrás de mim que já andei demais e tanto,
e mais
próxima do começo da avenida, tendresse é
fim de verso à
espera do versar que jura haver em ivresse, este agora quase
vizinho de mim.
Não sei o tempo passado, o tempo que durou a partida do sol
e a ausência de luar. Sei apenas que, num átimo, meus
ditos
belos olhos castanhos claros, e tristes, naufragados, de
repente brilharam, mesmo sempre pétalas apenas caídas.
E
fez-se dia, mais uma vez. Uma calma tarde na avenida,
naquela noite trazida para dentro de mim. Pus meus pés de
volta no chão, firmes por sobre a calçada, e Verse-moi,
verse-moi l'ivresse! multiplicou-se em sol. É sempre
preciso
muito cuidado com o que se pergunta, ou se diz, a alguém.
Sempre. Palavras podem ser, ao meio-dia, abruptamente
noturnas e, similares à uma longa noite, mesmo que possa
haver lua a gritar, alquebram girassóis.
Sou, hoje, monólogo. Pois não, eu o sei. Trago irreparáveis
tristezas em mim. Também isto eu sei visto que, nas festas
que compareço, nenhuma máscara poderá impedir
a dor que
me dói. Portanto, se vier a rimar, porque me dou plenamente
o
direito, embriaguez com ternura, o farei quando bem entender.
Sim, o farei, eu que já rimei naufragados e tristes olhos com
saudade e, a partir de agora, Sobrevivem a ti aqueles a quem
tu amas? com pétalas apenas caídas, cor-de-chá,
da
rosa que longe ficou.
O palco às escuras onde me recito é meu, sem fim, e amar
e
ser amado eu aprendi ternamente embriagado por poemas que
por injusto acaso não sobreviveram a mim.