Da dança e da luta
(Impressões)
  O canto se repete, e se repete, mantra de invocação a cada tombo na roda, a cada golpe que toque o corpo do outro — e o grito vem da platéia, ai! — na mistura de risos, as palmas mais fortes acompanham os berimbau, os atabaques, os pandeiros, os recos-recos. EH, Eh, ninguém viu, lá no mato ninguém viu, o facão cortou o galho, a bananeira caiu.
O movimento se repete, mudras de exaltação: pernas para o ar, um pássaro em queda livre e o baque, no meio da roda — o atabaque saúda. Um toque forte, ainda mais forte, e outro corpo se esquiva e investe, flui, reflui, avança, recua e brinca e luta. Mas não é corpo apenas, é além. Força guardada em fluxos que se expandem da cabeça aos pés, invertem o jogo: e onde eram mãos, são cabeças; e onde cabeças são braços; e onde braços, pernas; e onde fraqueza, força; e onde força, beleza. Vôo que agora se inverte. O toque se adensa e adensa e todos riem e as palmas ecoam os toques do berimbau, que se destaca. Alguém troca de lugar e o pandeiro repica. Entra o atabaque, chamando do silêncio o berimbau que emenda, estranho som  da cabaça, da moeda, ferindo a corda. Tudo vibra e se expande e o coração pula na roda e se benze e saúda e EEE, ninguém viu.
O cenário se repete: o mato encobrindo o homem, no eito, e o facão de jeito cortando rente à gola a cabeça do algoz. A justiça em queda livre de gavião no arco que traça o fação e rola o corpo. A mata esconde justiceiro e justiçado, o canto do eito, baixo, arrastado, cansaço de sol e fome e dor, eleva-se do som de palmas: pa pá — pa pá — e uma cabaça presa ao arco tocado pelo metal, vibrando na vara apanhada a esmo no chão capinado, amplifica o canto forte, risonho, provocador: Eh, eh, ninguém viu, lá no mato ninguém viu, o facão cortou o galho, a bananeira caiu. A alegria explode e rompe o canto e gira o canto e gira o corpo e onde mãos, pés, e onde cabeça, braços e onde braços, joelhos e o corpo salta contra a gravidade. Cai em pé. Gavião em queda livre e o baque do facão.
        Edith Piza
 

 
 

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