Auto-exoneração

Tem dias, como hoje, que sei: é preciso que eu converse comigo. São dias que a beleza faz-se póstuma e há poeira falsa na alma. Essa mesma alma que através de seus muitos buracos, assobia pra mim. Embora eu preferisse que ela cantasse, porque é também em dias assim, que nasce a verdadeira poesia — a poesia da alma expurgando do coração a tristeza e o desvario, enquanto a carne exangue se despe, desvalida e quase resignada, cansada de ser atriz de um circo glacial, encenando saltos mortais na tentativa insana de encarar de frente o que sobrou dos ideais que quando eu era menina chamava de sonhos e depois que me disseram que eu virara adulta percebi que era a tal da coisa que se chama vida.

Eu, estagnada em mim.

Monotonia que pesa mórbida e cinza e como louca grita que vai acontecer a despedida do irreparável desencontro que já desvenda o meu destino, que agora não é mais apenas meu. Paira em mim o ar quase rarefeito da noite. E vai exalando entre as carcomidas camadas do que eu insisti, com estranha delicadeza, chamar de vida, um ar de patética e empobrecida submissão, como se de repente ela já me houvesse dado tudo e nada mais houvesse a esperar, senão o desejo de se poder ficar com a alma nua exposta numa noite tranqüila, pronta pra vibrar e se emocionar, nem que seja diante da morte – que não precisa necessariamente ser aquela que pára o coração. Eu mesma já morri muitas vezes, quando ainda vivia a minha história sem amor. E ainda agora, alada a um inseparável e absurdo paradoxo (quase trágico) morro a cada dia, justamente porque vivo um amor que será sempre história compartilhada com a solidão de nossas camas indiferentes.

Eu, sozinha na minha própria multidão.

Pensamentos ácidos infiltram-se nas veias da minha memória que vai sendo despovoada sob o céu grená de uma angústia que enfarta a minha alma e a mantém de olhos esbugalhados diante dos ínfimos limites aos quais a insegurança e a frustração sutil e ardilosamente, como num conta-gotas envenenado, vão lhe confinando. Memória travada pela fúria dos enganos, um mundo que vai aos poucos sendo pintado de branco: lembranças apagadas, imagens gastas, sons secos, sabores insonsos (se é insonso pode ser sabor?) e sentidos quase embotados, ainda que levemente disfarçados em algumas manias — que na verdade são defeitos de quem, isolado, aprende a viver numa dimensão única, que ninguém mais consegue
conhecer.

Eu,  agora uma bifurcação de mim.

A manhã já desperta vestida da tristeza que vai vendo acontecer o arrancar da casca da ferida ainda umedecida pelas lágrimas salgadas numa história de duas vidas (ou seriam apenas duas palavras tristes e pra sempre sós?) , cada qual em seu buraco cavado no invisível refúgio onde somente as almas quase mortas entram, pra desovar seus desencantos e ali exorcizar os seus fantasmas. Gritos embutidos de um silêncio que vai matando aos poucos, espectro vivo da ausência que corroe a presença que nunca será delas. Ou pra elas.

Eu, perigosamente atraída pelas sombras.

Mas ainda é preciso acordar. E pra não se deixaram sufocar pelos pensamentos assombrados pelas intermináveis interrogações deixam-se mais uma vez capturar pelo trabalho e pela rotina, damas de companhia de quem já não sabe mais esperar muito da vida, ou do que restou do coração carbonizado pelo próprio amor. Ilhas subjugadas por um outono enlouquecido que sonhavam com a vida. Não queriam desgraças. Nem pausas. Ou dores. Tampouco paradas — obrigatórias ou não. No sangue borbulhava apenas uma emergência sem esperas que somente desejava poder queimar a noite pra que ela não beijasse o dia e eles então pudessem voar. Eu, sentindo-me senhora de meus medos. Ele, esgotando-se em seus segredos. Ele e ela nomes esvaziados em quartos trancados em seus mistérios. Ela que sonhava. Sonhava e jogava para trás a cabeça, no lugar dos cabelos compridos que não tinha. Ele que sonhava. Sonhava e ia ao cinema, onde o filme não tinha atores, nem sons e muito menos cores.

Eu, inventário sem destino.

Hora de levantar os panos. O circo acorda. Processos sem fórum e comarca. Réus sem passado. Nascedouros de fissuras. Armários sem prateleiras. Cabides vazios. Livros sem palavras. Desenhos sem traços. Flores sem perfume. Doença sem causa. Grãos inquietos.  Duelo sem armas. Rios sem água. Locutores mudos. Túmulos sem cadáver. Arquivos sem pastas. Liberdade sem asas.

Eles, pagando pra sempre o preço de sua escolha.


Eliane Malpighi

 
 

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