Minha avó chama-se Marcelina Maria Ribeiro e tem 75 anos de idade, três vezes mais e um tanto ainda do que eu.
    Nasceu ali, no Piauí, a alguns quilômetros de São Raimundo Nonato, no meio da roça, entre São João e Angical.
    Minha avó veio ao mundo em uma casa de taipa, ao treze anos se casou e aos catorze teve o primeiro filho. Depois deste, quase ano após ano, outros catorze foram paridos, dos quais, dois morreram ainda no peito. Apenas sua primeira cria, uma mulher, quase sua irmã, permanece lá, no sertão sem tamanho que cobre Piauí. Os outros encontraram-se no mundo e ela mesma mudou a morada para o Pernambuco que beira o São Francisco.
    Hoje, povoam-lhe algo em torno de trinta netos e quinze bisnetos.
    Dona Marcelina se espanta que os meninos de agora nasçam com os olhos arregalados, que falem rápido e logo se danem a ir para o mundo sozinhos.
    Sempre que vou vê-la, permanece ao meu lado muito tempo em silêncio, comigo, que poucas vezes sei lidar com a ausência de vocábulos.
    Ela ajudou a me criar e ainda me leva até o portão quando me resolvo a de novo voltar ao mundo.
    Admira-se, a minha avó, ao ouvir filhos, netos, bisnetos e agregados dizerem o quanto o tempo corre.
    O tempo não correu para Dona Marcelina, ela não chegou aos 75 anos em um pulo, em um olhar de relógio.
    Minha vó viveu muitas vidas, muitos combates e entre levantar de bandeiras brancas, curou feridas e enraizou outras.
Casou-se assim, por não ter saída, teve uma escolta de filhos por simplesmente seguir a lei da natureza e enviuvou sem opções.
    Hoje, 22 de novembro, penso nela, penso em suas rugas e ali, por trás das rugas, a mulher que fora e é, os sonhos e medos que tivera, as escolhas que não lhe deram.
    Penso entre horários e agendas lotadas, e-mails, correspondências e pessoas prolixas. Penso entre minhas brincadeiras e pretensões de gente grande.
    E acabei me pegando em um murmúrio: "como o tempo passa, como corre, como me ele me espanta... já não sou criança e preciso cuidar de mim".
    Vou escolher a pessoa com quem irei me casar, escolher se quero filhos e quantos filhos poderei ter, posso dimuinuir o avanço das rugas, poderei disfarçar o cansaço, até mais, enganá-lo.
    Trabalho em um computador quase oito horas por dia, acho que sou capaz de mudar o mundo, amo uma pessoa e converso com outras cujos rostos e vozes desconheço.
    Minha vó é sábia, mas nem sempre entende essas coisas todas, nem sempre entende como o mundo invade a sua vida.
    Ela merece ser comemorada, por todos os seus dias vividos, por ter tido coragem de nascer, por ter coragem de viver, por ter gerado a minha mãe que me trouxe ao mundo.
    Merece ser comemorada em todas as suas horas, todas aconteceram ao seu devido tempo, mesmo que ora parecessem demoradas por tédio ou dor e ora corressem céleres, iluminadas por certa alegria e paz.
    Admiro seu rosto e nele vejo a antítese do meu, nos nossos olhos, os contrates entre o seu passado e tudo o que desejo em meu presente e meu futuro.
    Mas não quero que o tempo simplesmente corra. Quero encarar as horas como ela encara, atenta, desperta.
    Sinto-me feliz porque faço aniversário e isso é sinal de que o tempo passa, de que ele caminha e estou viva.
    Sinto-me feliz por minha avó, porque ela sorri e é sábia.
    Algum dia, se tudo correr bem, terei 75 anos e meus netos me verão com olhos repletos de expectativas e anseios diferentes dos meus e daqueles que fizeram Dona Marcelina. É muito rica a vida.


Kelly Cristine Ribeiro

 

 
 

 

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