O GOZO DAS LETRAS
Sem nenhum ritual de alfabetização, longe de qualquer testemunha, já lia aos quatro anos de idade. Tendo começado pelos cabeçalhos, logo me atirava, embora tateando, ao corpo das notícias de revistas e jornais. Percebia o quanto me fascinavam textos pouco ilustrados, justo o oposto do que crianças dessa faixa etária exigiam. Consumia com avidez as letras, seus arranjos, no que resultavam. E, à medida que ia captando – ou não – os significados, destilando-os, queria mais. Cedo divisei que é por cima de vastos espaços de ignorância, de uma realidade tectônica, nas entrelinhas, que se aprende. Antes que tivessem notado minha conquista, sorvi o Monteiro Lobato do meu irmão pouquíssimo manipulado. Ah o cheirinho de papel novo, afrodisíaco feito um bom vinho! No colégio, alguns professores me incentivavam a assistir aulas de séries mais adiantadas. Eram unânimes em afirmar: vá aonde o seu coração mandar, o desejo é soberano, o que for passível de compreensão será absorvido, o que não, expelido ou posto em reserva para um tempo futuro. Mais tarde, lendo numa língua estrangeira, não empacava se desconhecesse o que queria dizer uma palavra, continuava e interpretava pelo conjunto, deixando para esclarecer o detalhe depois – não foi Aristóteles quem disse que o todo é anterior às partes? Nicholson, curador do museu JJ, tem a mesma opinião. Ler (Joyce) é participar de uma corrida de cavalos: se houver um obstáculo, você pula e segue em frente.
Perguntava feito louca. Um dia, bem pequena, disparei: o que é fotossíntese? Minha mãe estranhou isso vindo de uma pirralha, não teve paciência para responder, ignorou. Eu tinha lido num encarte da floricultura e ficado curiosa, além de impressionada, com a sonoridade do vocábulo. O que é ressurreição da carne? Dessa vez tinha sido num opúsculo de catecismo, trazido da igreja. Deixe de ouvir conversa de adulto! Ela levantava a mão e eu me calava. Como se tudo o que quisesse saber fosse proibido. Teria, desse modo, atiçado minha sede de conhecimento? Papai, ao contrário, se estivesse presente (porque sempre fora, viajando a trabalho) sorria e me explicava. Quando não, dizia: vou me informar e lhe falo. Jamais deixou de cumprir o prometido. Estaria aí a origem do meu amor à literatura, às viagens e aos homens? (Não necessariamente nessa ordem) Ler me dá tanto prazer que muitos dizem invejar o desligamento, o abandono, a expressão de satisfação quando o faço. Considero, inclusive, um erro ensinar o bê-á-bá somente com objetivo pedagógico e não para a simples fruição. Lembro-me de pré-adolescente, com a mão esquerda segurar um livro e com a outra me masturbar. Nada de pornografia, sequer erotismo, não era nem – ainda – Lolita, de Nabokov ou a trilogia de Henry Miller, embora esses também sejam de boa safra. Podia ser um conto do Rosa, um romance de Machado, um poema de Pessoa. Com isso, talvez (quem sabe?) um palco seminal para a escrita estivesse sendo montado, pois as colheitas não tardariam: muito cedo começaria a escrever.
Não tinha sido apresentada aos dicionários, nem desconfiava de sua existência, e eis que, por acaso, xeretando na biblioteca, os vislumbrei. Agora, além dos óbvios rótulos, seria possível desarrolhar os mistérios da língua, experimentar seu bouquet e paladar, degustá-la até a última gota? (Tornou-se um hábito, consulto-os sempre, em vários idiomas, várias vezes ao dia) Conferia, satisfeita: “construção de grandes proporções” era mesmo “mole”, conforme tinha aparecido ao fazer palavras cruzadas (outra paixão) quando a empregada repreendeu-me: cuidado, não vá rasgar a página, não é caderno pra colorir! Saí correndo para contar a novidade, queria partilhar a descoberta com os meus amigos, mas – ó decepção – ninguém estava nem aí. De todo modo, o achado representou dois coelhos sob cajadada única: comecei a resolver sozinha minhas indagações etimológicas, parei de amolar os outros. Sim, pois querer saber sobre certos fenômenos, seu funcionamento, causava, no mínimo, embaraço. Escutava é porque é e pronto, tinha que calar a boca, sem maiores questionamentos. O não também era porque não , restava obedecer, mesmo na falta de um argumento lógico para a proibição.
Em 64, conscientizei-me do quanto a arte literária pode incomodar. Sob suspeita de serem subversivos, vi preciosos exemplares jogados no chão para serem apreendidos. Tive de refrear o reflexo de apanhá-los de volta e devolvê-los ao seu lugar na estante. E, embora impactada com aquela batida policial, sua brutalidade, o absurdo da situação (selvagens uniformizados de censores), enquanto eles armavam a patética cena, eu divagava... Alberto Manguel, em Uma história da leitura, relata um fato contado por Borges. Em 1950, em meio a manifestações contra a censura, populares gritavam nas ruas sapatos sim, livros não . Ao que os intelectuais respondiam sapatos sim, livros sim . Mas parece que não convenciam, como se o conflito entre realidade e ficção tivesse que ser mantido. Na verdade, o que se teme é o pensar que do ato de ler advém. O poder está na mente, e o leitor, tão ameaçador quanto o autor. Dar um sentido, quer dizer, o seu, pessoal, intransferível (quiçá provisório) e não aceitar um imposto como verdadeiro e eterno: coisa incompatível com certos regimes políticos. Raciocinar por conta própria, talvez diferente da maioria, pode desestabilizar o sistema, a história tem nos mostrado, às vezes é crime que se pune com banimento, exílio, prisão, tortura e até morte. Nossa família que o diga.
Ana Guimarães