A ÁGUA MAIS BELA
(Fragmentos)

                   Possuo, desde a infância, o sentimento da minha diversidade. Antes de habitar o universo textual que exprime e testemunha a minha vida de poeta e artista literário, eu residia num universo íntimo e intransferível, paralelo à existência cotidiana. Ele era o meu segredo, o meu mistério e a minha libertação. Contudo, essa diversidade não significava separação, e sim o dissídio que une todos os homens, a dessemelhança que impõe a todas as criaturas o emblema da solidariedade comum.
                   A minha predisposição para escrever poemas surgiu na adolescência, na época das primeiras leituras e descobertas. Eu me via diante de um universo que reclamava uma celebração. A ele confiei a minha singularidade, a minha expressão. Assim, desde o início a Poesia se impôs a mim como uma linguagem especial dentro da linguagem geral — uma linguagem tornada arte, e dotada ao mesmo tempo de som e signo, música e significação.
                   Eu aspirava a criar uma magia que me permitisse ser e existir no mundo dos homens.

(...)

                   Victor Hugo aconselhava aos principiantes: "Nada de versos belos", embora haja milhares deles em sua vasta obra.
                   O poeta deve evitar a facilidade da Beleza, e procurar cultivar a feiúra das coisas e dos seres, a deformidade, a dissonância — e, de modo mais amplo, dar espaço à estética da fealdade que desde a adoelescência tanto me atrai em Rimbaud, especialmente nos poemas rimados e metrificados de sua fase colegial.
                   Lembro-me do choque experimentado quando, aos dezesseis anos, li, no seu soneto "Vénus Anadyomène", o dístico final que transgride todas as ideias e conveniências de "beleza" da chave-de-ouro clássica:
                   
                   — E tout ce corps remue et tend sa large croupe
                   Belle hideusement d'un ulcère à l'anus.

(...)

                   Desde a minha estreia tenho sido considerado um transgressor e, na minha geração, célebre pelos versos homeopáticos, sempre fui censurado e até vilipendiado pela minha diferença.
                   Eu era a ovelha negra ou o elefante branco, de impossível aceitação ou assimilação. Sergio Buarque de Holanda dizia que eu era um poeta de nome curto e versos longos numa geração de poetas de nomes compridos e versos curtos. E ainda hoje, passados quarenta anos, a discriminação inicial não se alterou. Ao contrário, só se tem exacerbado.
                   O ágio que pago pela minha diferença — pela minha individualidade — continua sendo muito alto. Desde a minha estreia tenho sido considerado um transgressor e, na minha geração, célebre pelos versos homeopáticos, sempre fui censurado e até vilipendiado pela minha diferença.
                   Eu era a ovelha negra ou o elefante branco, de impossível aceitação ou assimilação. Sergio Buarque de Holanda dizia que eu era um poeta de nome curto e versos longos numa geração de poetas de nomes compridos e versos curtos. E ainda hoje, passados quarenta anos, a discriminação inicial não se alterou. Ao contrário, só se tem exacerbado.
                   O ágio que pago pela minha diferença — pela minha individualidade — continua sendo muito alto.

Lêdo Ivo

Do livro: O aluno relapso, Nemar - Massao Ohno/Editores, 1991, SP                                  

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