Espelhos: um outro lado
"Espelho não é coisa criada e sim nascida"
Clarice Lispector
Dos objetos à nossa volta, o espelho talvez seja o mais inquietante. Este utensílio diário, mentirosamente simples, que parece estar agarrado ao roteiro humano, tanto quanto o fogo, a água, a roda, tal a ordem de simbologias que carrega.
O espelho trafega na mitologia, nas histórias infantis ou de terror, nos parques de diversão alterando o olhar, nos motéis aumentando luxúrias.
Quebrá-lo traz sete anos de azar. É necessário cobri-lo em dias de tempestade. A pele dos espelhos é sempre uma fina camada de medo e atração.
Toda esta sombra de inquietude que ronda os espelhos vem daquilo que eles, por serem luz, concedem à luz: os sentimentos capitais que humanos carregam na face, geralmente só percebidos nos outros. Mas, quando em silêncio,
estáticos, os humanos miram aquele desconhecido que se aloja no espelho, surgem nos ossos da alma ordenações de fuga e desespero. Olhar-se nos olhos é uma luta para poucos.
É quase impossível aceitar-se gêmeo da imagem que o espelho fornece. Por isso, no comum das gentes, nos desatentos, o espelho existe apenas para reformar a aparência: um retoque nos cabelos; a correção de um batom passado às pressas; um rímel desmanchado por lágrimas; uma arrumada na gola do paletó; ou a verificação se não se deixou um pedaço de barba por fazer. Em alguns, um abalizador da vaidade física, em outros uma ferramenta no ensaio de oratória ou de conquista. Nestes, qualquer vislumbre de funduras é negado. Para o desatento, o espelho existe apenas na superfície.
Por outro lado, alguns teimam em ver o espelho para além de si mesmos. Em "Água Viva" de Clarice Lispector lê-se: "Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser
vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem - esse alguém então percebeu o seu mistério de coisa". Esse alguém é um atento: sabe que o espelho é um chamamento para os pastos do além da visão.
Os antigos liam a sorte nos espelhos. Sabiam por certo que dali viria mais que uma auto-imagem refletida ao contrário: dali sairia todo um destino a ser seguido. Eles viam o espelho como um objeto que respira sozinho, que se reproduz infinito quando na frente de outro.
A sorte, a vida, os dois lados de tudo, só podem estar escritos em algo que mesmo quando se quebra fica inteiro. É o que nos revela a mais atenta das nossas escritoras: "Um pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo".
Rubens da Cunha